quinta-feira, 1 de novembro de 2007

48

Do outro lado da porta, Ricardo caminhou a passos lentos para o elevador e carregou no botão. Olhou à sua volta e respirou fundo, receando que aquela fosse a última vez que via aquele vestíbulo. Procurou guardar na retina as paredes forradas a madeira, as luzes de halogénio do tecto falso, o botão quadrado e a porta cor de vinho do elevador, o vaso branco esquecido ao canto onde crescia uma planta de folhas paralelinérveas verde escuro que não conseguiu identificar, como se isso pudesse restituir-lhe Carla, ou, pelo menos, mitigar o sentimento de perda que o invadiu mal saiu do apartamento onde Carla vivia. Sobressaltou-se com o aviso sonoro da chegada do elevador e foi a passo lento que entrou nesse cubículo metálico que o levaria até ao rés-do-chão. Saiu do prédio cabisbaixo e dirigiu-se para o carro, entrou e pô-lo em movimento.

Àquela hora não havia muito trânsito e Ricardo pisou com força o acelerador ao longo avenida onde Carla morava. A sua cabeça estava longe dali; conduzia mais por instinto do que prestando verdadeiramente atenção às manobras que efectuava, bem como às dos restantes condutores. Nestas circunstâncias, Ricardo só se apercebeu do carro que entrava na avenida vindo da rua que se abria à sua direita demasiado tarde para lhe ceder a passagem, como estava obrigado pelas leis da estrada. Para evitar a outra viatura, travou a fundo e guinou para a esquerda, atravessando toda a largura do lado direito da avenida, até ao separador central, e foi com alguma sorte que conseguiu evitar o impacto desse lado. Depois de ganhar de novo o controlo sobre o percurso do carro, agarrou o volante com as duas mãos e apercebeu-se de que estava a tremer da cabeça aos pés. O condutor do outro veículo, que tinha entretanto parado, abriu o vidro e gritou-lhe qualquer coisa que Ricardo não ouviu. Acenou-lhe um pedido de desculpas e, verificando que não havia danos materiais nem ninguém ferido, arrancou sem mais delongas, pois depois do acabara de ouvir da boca de Carla não sentia em condições de ouvir mais nada e muito menos ter uma discussão no meio da rua.

A tarde passou-se até às quatro e meia ocupada entre papéis e reuniões a que não prestou a mínima atenção. A essa hora, Ricardo decidiu que naquele dia não estava em condições de fazer mais nada e decidiu ir para casa. Nem sequer tinha mais compromissos agendados com clientes para o resto do dia, pelo que nem sequer perdeu tempo a dizer a Cristina que ia embora. Esta viu-o sair do escritório e passar em direcção à saída e também não o questionou.

Quando chegou a casa, deixou-se cair no sofá, pegou no controlo remoto da televisão e ligou-a. No ecrã apareceu um rancho folclórico que ia dançando ao som de acordeões, violas e adufes. Ricardo deixou-se ficar a olhar para as mulheres que rodopiavam à volta dos homens de chapéu e colete pretos, mas o seu olhar era totalmente vazio, como de resto se encontrava a sua alma. A sua grande dúvida era, nesse momento, o que fazer com a informação que Carla lhe dera. O seu melhor amigo tinha um filho de seis anos e não sabia e isso não lhe parecia correcto. Menos correcto ainda lhe parecia o seu melhor amigo estar de posse dessa informação e sonegar-lha. Menos correcto!? Era traição, isso sim! No entanto, ao mesmo tempo, a mãe da criança mexia consigo mais do que poderia ter imaginado que viria a acontecer quando a vira pela primeira vez e essa mãe, por quem estava sem dúvida apaixonado, pedira-lhe, quase lhe implorara, que mantivesse o seu segredo. E ele não podia sequer imaginar causar sofrimento a Carla... Por momentos, lamentou-se por ter esgaravatado aquele assunto:

"Se eu não tivesse perguntado, se não tivesse insistido, não saberia de nada e não estaria agora neste dilema... Quem me mandou a mim?"

Mas logo se convenceu de que era melhor assim do que viver eternamente na dúvida e deixar-se enganar apenas para poder continuar a viver a sua vida pactuando com a mentira, uma mentira que era preciso terminar dalguma forma, apesar de ser uma mentira fruto do medo, da insegurança e da inexperiência e por isso desculpável.

"Negar um pai a um filho e um filho a um pai não é uma mentira desculpável!", indignou-se logo de seguida.

Continuou com estes pensamentos antagónicos até pouco depois das oito, em que foi arrancado ao seu mundo pelo som do telefone de casa. Atendeu e ouviu a voz de Miguel, que nem precisou de dizer por que ligava; Ricardo lembrou-se imediatamente de que tinha combinado jantar com o amigo. Tentou desmarcar, mas Miguel insistiu, afirmando que precisava mesmo de falar consigo e que não podia ficar para outro dia, pois nem andava a dormir bem. Ricardo lembrou-o de que ainda estava em convalescença depois do prolongado internamento e das operações a que fora sujeito por causa do acidente, mas nem assim conseguiu demovê-lo, pelo que acabaram por combinar encontrar-se daí a meia hora no restaurante onde costumavam jantar quando queriam conversar só os dois.

O dito restaurante ficava situado em frente ao mar e era relativamente pequeno. Tinha as paredes, pintadas dum tom laranja esbatido, enfeitadas com recordações das múltiplas viagens que o dono fizera pelo mundo fora.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

47

A mão de Ricardo ainda segurava a sua, quando Carla a apertou suavemente. Então, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, ela começou a falar:

– Fui da turma do Miguel do nono até meio do décimo primeiro ano. Eu era o patinho feio do Colégio: era magrinha, desengonçada, e não tinha cuidado com o que vestia. Para tu veres, nesse tempo todo só fiz uma amiga, a Francisca, e foi já no início do décimo primeiro. Mas antes disso, ainda antes do fim do nono ano, se não estou em erro, o teu amigo achou por graça colocar-me uma alcunha, a “Freira”, e a coisa pegou. A princípio, ainda disfarçavam, chamavam-me pelo nome à minha frente e referiam-se a mim pela alcunha quando eu não estava, mas a certa altura passou mesmo a ser declarado, e das poucas vezes que ele se dirigia a mim chamava-me aquilo. Éramos os melhores alunos da turma, e havia uma certa rivalidade, embora que disfarçada, mas ele ganhava na maioria das vezes. Ainda assim, e sem saber muito bem como, apaixonei-me por ele. O Miguel era o sonho de todas a raparigas do Colégio, e eu não era excepção. –, Dizendo isto, Carla fez uma pausa e, ao olhar Ricardo nos olhos, apercebeu-se de como tudo aquilo o estava a magoar, mas sabia que já não havia volta a dar e teria de ir até ao fim, pelo que continuou: – Foi na Festa de Carnaval do décimo primeiro ano que tudo aconteceu. Estavam todos eufóricos, era a primeira festa fora do Colégio que nos era permitido fazer. Eu não queria ir, mas a Francisca insistiu tanto que lá acabei por ceder. Quando lá cheguei fiquei maravilhada. Tinha dezasseis anos e nunca havia entrado numa discoteca. Bebi um pouco, e, como não estava habituada, fiquei logo demasiado alegre. Dancei muito, e já quase no fim da festa ouvi-o chamar o meu nome. Até àquele momento ele nunca tinha dito o meu nome; eu tinha sido sempre “a Freira”. Estendeu-me a mão e eu, sem saber muito bem porquê, estendi-lhe a minha. Levou-me para fora dali e beijou-me e eu nem queria acreditar que aquele com quem todas as raparigas do Colégio sonhavam estava ali comigo, a beijar-me! Senti-me a rapariga mais sortuda e feliz do mundo. Fui uma tonta e deixei-me ir. Tenho consciência de que a culpa não foi só da bebida e não penses que me furto às minhas responsabilidades. No dia seguinte fui falar com ele, mas ele disse-me que não se lembrava de nada. Fiquei desfeita, mas o pior ainda estava para vir um mês e meio depois: estava grávida e o Miguel nem se lembrava do que tinha acontecido entre nós. Os meus Pais foram fantásticos e eu fui viver para Lisboa e em Novembro o Tomás nasceu. O resto já tu sabes.

O silêncio caiu sobre eles como um manto negro e pesado que os sufocava. Foi Ricardo quem o quebrou:

– Ele tinha o direito de saber… Ainda tem. E o Tomás tem o direito de conhecer o Pai, não achas?

– Acho, mas tenta colocar-te no meu lugar. Eu tinha de proteger o meu Filho. O Miguel ia rejeitá-lo; ele não se lembrava de nada. Tu conhece-lo melhor do que eu; sabes bem como a opinião dos amigos era importante para ele. Achas mesmo que ele iria assumir que tinha ido para a cama com a “Freira” e que ia ser Pai do Filho dela??? Ora, Ricardo, nem tu acreditas nisso… – e dizendo isto, deixou-se cair novamente nas almofadas.

– Talvez tenhas razão, mas eu não sei o que pensar. O Miguel é o meu melhor amigo e o Tomás é a cara dele e tu és a mulher que eu amo… O que é que eu faço, Carla? Dizes-me o que é que eu vou fazer, para além de enlouquecer? – o desespero na voz de Ricardo era assustadoramente doloroso.

Carla voltou a pegar na mão de Ricardo e este, num impulso, abraçou-a com força, como se tivesse receio de a perder no momento em que a soltasse.

– Não te quero perder… – sussurrou-lhe ele ao ouvido.

– Eu também não te quero perder, Ricardo. Mas também não quero perder o meu Filho… – respondeu-lhe Carla, perguntando de seguida – Vais contar-lhe, não vais?

Ricardo tapou o rosto com as mãos e sentou-se na cama, baixando de seguida a cabeça. Carla aproximou-se e percebeu que ele já não era, naquele momento, capaz de conter a dor e que dos seus olhos brotavam lágrimas de desespero. Com cuidado e carinho abraçou-o e choraram juntos. Quando se afastaram, Ricardo limpou o rosto, olhou-a com uma expressão indecifrável, como se estivesse a despedir-se dela e disse:

– Não sei ainda o que vou fazer. Tenho de pensar muito bem. Depois ligo-te, mas agora tenho de ir arejar a cabeça e colocar as ideias no lugar. Desculpa. – levantou-se e dirigiu-se à porta da rua.

Carla seguiu Ricardo e quando estava à porta de sua casa ele olhou-a e abraçou-a mais uma vez, beijando-a de uma forma intensa e apaixonada, e saindo de seguida. Quando a porta se fechou, Carla sentou-se no chão e chorou até que as lágrimas secassem. Acabava de perder o homem que amava e tinha plena consciência disso.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

46

Eram quase 13 horas e Ricardo devia estar mesmo a chegar. Carla sentia-se ansiosa. Qualquer coisa na mensagem de Ricardo a havia deixado inquieta. O que teria acontecido para que a palavras dele fossem tão distantes e frias? Não conseguia cogitar o que quer que fosse que pudesse justificar tal atitude. Estava confusa. Se, por um lado, queria afastar-se de Ricardo e parecia estar perante a oportunidade de que estava à espera, por outro sentia que poderia estar a perdê-lo naquele entretanto e isso deixava-a assustada. Aquele homem parecia significar mais para ela do que havia imaginado.

Sentiu o telemóvel vibrar e viu o nome dele a piscar no visor. Já estava pronta e não se demorou a descer. Entrou no carro e ficou expectante. Ricardo deu-lhe um beijo suave nos lábios, e arrancou. Ficaram em silêncio todo o caminho. Andaram imenso tempo e Carla teve a sensação de andar em círculos. Parecia que Ricardo não sabia muito bem para onde ir. De qualquer forma, não se admirou quando pararam à porta de sua casa.

- Já deves ter percebido que precisamos de conversar sobre um assunto muito sério. Depois de andarmos às voltas percebi que o único local onde poderíamos conversar seria em tua casa. E já vais perceber porquê. - disse Ricardo, quebrando, finalmente, o silêncio, para continuar de seguida, - Só queria pedir-te que mantivesses o Tomás longe de casa. Vamos ter uma conversa de adultos e não gostava que ele ouvisse. Gosto muito dele, sabias? -, e dizendo isto acariciou-lhe o rosto e beijou-a mais uma vez.

Mesmo sem perceber o porquê daquele pedido estranho, Carla telefonou ao Pai pedindo-lhe que fosse buscar Tomás ao colégio, dizendo que passaria em sua casa para o ir buscar, mais tarde. Saíram do carro e subiram. Quando Carla fechou a porta atrás de si, viu que Ricardo a olhava de uma forma estranha e intensa. Aquele não era o homem por quem se havia apaixonado. O seu olhar estava triste e, quase se arriscava a pensar que, magoado, também.

E Ricardo começou a falar.

- Tenho pensado muito nos últimos tempos. Podia estar aqui com rodeios, explicar-te os porquês das minhas dúvidas, dizer todas as coisas que me dei a trabalho de ensaiar na última noite, mas só há uma forma de saber o que quero, de esclarecer de uma vez as dúvidas que me assolam, e de perceber se sou, ou não, um homem livre para te amar. -, dizendo isto Ricardo respirou fundo e formulou a pergunta, - O Tomás é filho do Miguel?

Carla sentiu que o chão se abria sobre os seus pés. Parecia que um buraco negro a sugava para a escuridão imensa do infinito. Sentiu a sua mente ser invadida por uma quantidade indescritível de perguntas e depois o nada. Deixou de ver, deixou de ouvir, perdeu as forças nas pernas, e desmaiou.

Quando acordou estava deitada na sua cama, com Ricardo a seu lado, a segurar-lhe na mão.

- Estás bem? -, perguntou-lhe ele num tom preocupado.

- Estou um pouco tonta, mas estou bem. Ricardo… -, preparava-se para dizer algo mais, mas Ricardo colocou-lhe o dedo sobre os lábios.

- Descansa. Conversamos depois. -, disse-lhe ele.

- Não. Temos de conversar agora. Fizeste-me uma pergunta directa, e eu tenho de te responder. Mas peço-te que me ouças até ao fim, e que não me julgues antes de eu ter terminado. -, quando Carla disse estas palavras, Ricardo percebeu o que se lhes seguia e foi com uma dor imensa no peito que escutou as que de seguida saíram da boca da mulher que amava, - Sim, o Tomás é filho do Miguel…

terça-feira, 23 de outubro de 2007

45

Inquieto demais para conseguir voltar a adormecer, Miguel levantou-se da cama e dirigiu-se à cozinha. Precisava de um copo de leite quente para aclamar a inquietude que havia surgido dentro de si ao pensar em Margarida. Aqueles pesadelos que o atormentavam e o faziam colocar em causa que tipo de pessoa seria por os ter já há muito haviam desaparecido. E, por isso mesmo, há algum tempo que não se demorava a pensar nela. Mas aquela inquietude inesperada incomodava-o.

“Chama-se consciência, meu caro”, acusou-se a si mesmo, continuando: “Foste rude e bruto na forma que falaste com ela e agora pesa-te a consciência. Essa é que é essa.”. “Isso é um disparate!”, respondeu a si próprio, “Ela merecia ouvir aquilo tudo e muito mais. A Margarida deixou-me quase desfeito e tudo o que lhe disse foi pouco, porque no fundo sei que não a magoei nem um terço do que ela me magoou a mim. Se voltasse atrás fá-lo-ia novamente.”. No mesmo instante que pensou aquelas palavras, Miguel sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. “Estou a ficar doido...”, pensou para consigo mesmo antes de beber o seu copo de leite e regressar ao quarto para mergulhar, de novo, nos lençóis.

As horas passaram e quando Miguel se deu conta já era de manhã. Pegou no telemóvel e telefonou a Ricardo.

- Bom dia! Oh Ricardo, almoça comigo! Acho que estou a ficar doido... – disse Miguel assim que Ricardo atendeu o telemóvel.

- Não sei se posso… Tenho uma questão muito importante para resolver, mas podemos jantar. – respondeu Ricardo, sem sequer lhe dar hipótese de replicar.

- Está bem. Já que o que tens para resolver é assim tão importante, eu espero até ao jantar. Mas não te cortes, Ricardo, preciso mesmo de conversar contigo. À tarde telefono-te para combinarmos as horas e o sítio. Até logo. – dizendo isto, desligou o telemóvel, pensando para consigo: “Este gajo está sempre com a cabeça metida no trabalho. Então nos últimos tempos tem sido abusivo.”

Em sua casa, Ricardo olhava para o telemóvel e tentava decidir se telefonava naquele momento a Carla ou se deixava para mais tarde. Resolveu enviar-lhe uma mensagem escrita, não fosse dar-se o caso de ela ainda estar a dormir.

Quando o telemóvel deu sinal de nova mensagem, Carla olhou-o meio a medo: só podia ser Ricardo. Tinha prometido a si mesma na noite anterior que não iria permitir mais nenhum tipo de contacto com ele, só que não foi capaz de resistir ao impulso de ler a mensagem. No entanto, ao fazê-lo tremeu, não pelas palavras doces e apaixonadas de Ricardo, mas sim pela frieza e secura das mesmas.

“Precisamos de conversar. Vou buscar-te a casa às 13hs para almoçarmos. R.”

De modo automático, sem pensar no que estava a escrever, Carla respondeu-lhe da mesma forma seca e fria: “Combinado. Até logo.”

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

44

"Mas o que é que me deu? Só posso estar a perder completamente a noção da realidade. Isto não pode ser… Não posso voltar a vê-lo. Ceder a impulsos nunca foi o meu forte, e sempre que o fiz as coisas não correram bem. Não pode ser”, pensava Carla de si para consigo mesma enquanto abria a porta do prédio, depois da despedida de Ricardo, que a trouxera de volta depois do encontro sobre o Rio.

Sentia que havia cedido a uma fraqueza, termo que, em boa verdade, usava para se convencer a si mesma de que o que sentia por Ricardo nada mais era do que uma simples atracção física. Era impensável, sequer, considerar a hipótese de que se havia apaixonado por ele. Não podia ser. Os últimos dois dias tinham sido uma loucura, momentos que sabia não poderem repetir-se. Só não sabia até quando teria força para resistir à vontade de voltar a perder-se nos braços de Ricardo e esquecer o mundo.

Sentia-se tão perdida e tão sozinha!

Já em casa, e depois de espreitar Tomás, que dormia descansado e tranquilo, dirigiu-se à sua casa de banho, despiu-se, abriu a porta da cabine de duche e entrou. Já lá dentro, abriu a água quente e deixou que ela escorresse sobre o seu corpo, como se quisesse apagar da sua alma tudo o que sentia. Com a água a escaldar a escorrer-lhe pelo corpo, Carla fechou os olhos e deixou-se levar pelas recordações. Retrocedeu no tempo e reviveu, por breves instantes, a festa de Carnaval e tudo o que se lhe seguiu. Depois pensou em Ricardo e chorou. À medida que o conhecia mais, ele ia derrubando as suas muralhas e fazendo com que o sonho de ser feliz e construir uma família maior ganhasse contornos de realidade. Ricardo e Tomás pareciam entender-se às mil maravilhas, como se fossem pai e filho, mas não eram. O pai de Tomás era Miguel e essa verdade jamais a deixaria ser feliz com Ricardo. Nesse instante percebeu que o que sentia por ele não poderia, simplesmente, ser vivido.

Saiu do duche mais calma e com a certeza de que a decisão correcta para todos só poderia ser aquela. Quando chegou ao quarto olhou para o telemóvel e viu que tinha uma mensagem escrita. Pensou em não abrir. Sabia ser de Ricardo. “Qual é o mal?”, questionou-se a si mesma, “Afinal não vou voltar a vê-lo. É uma espécie de despedida…”, tentou convencer-se a si mesma.

“Gosto muito de ti!!! E não te quero perder… Beijo enorme e dorme bem ***”

Ao ler a mensagem de Ricardo, sentiu-se ficar sem forças e deixou-se cair em cima da cama. Era imperativo afastar-se. Não podia voltar a vê-lo. Só não sabia como lidar com isso.

Em sua casa, Ricardo debatia-se com um dilema semelhante.

“Só posso estar a ficar doido. Só posso. Depois da conversa com o Filipe, como é que eu me fui deixar ir numa destas. Já não sou nenhum puto. Tenho é de ter juízo, deixar-me de paixões e pensar no que é realmente importante. O Miguel é o meu melhor amigo. O Tomás é, quase de certeza, filho dele. E se essa ténue dúvida se consolidar em certeza, ele tem o direito de saber que tem um filho fantástico como o Tomás. Amanhã vou falar com a Carla. Tem de ser. Ela vai ter de me contar a verdade. E depois, consoante o que resultar da nossa conversa, vou falar com o Miguel.”

A poucos quilómetros dali, Miguel acordava inquieto. No dia seguinte voltaria ao trabalho, e sentia-se ansioso para regressar ao “seu pequeno mundo”, como Margarida costumava chamar ao seu gabinete na empresa. Pensou em Margarida e sentiu um aperto no peito. Há algum tempo que não sabia nada dela.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

43

Ricardo esqueceu a conversa com Filipe, as dúvidas que pairavam sobre aquela relação, esqueceu tudo e apenas correspondeu ao beijo de Carla, envolveu-a nos seus braços e os dois assim permaneceram durante alguns minutos, apenas se beijando e esquecendo o mundo à sua volta.

Quando os seus lábios finalmente se apartaram, Ricardo encaminhou Carla para o seu carro enquanto esta lhe falava das saudades que tivera desde a última vez que o vira.

– Mas foi ontem ao jantar! – exclamou Ricardo.

– E então? Já se passaram mais de vinte e quatro horas! – retorquiu Carla, metendo-lhe o braço no seu.

– Sabes que mais? Também morri de saudades tuas... – disse Ricardo com sinceridade.

Carla abraçou-se a si e voltaram a beijar-se. Ricardo abriu-lhe a porta do carro e, depois de Carla entrar, ele contornou o carro e entrou para o lado do condutor. Girou a chave na ignição e arrancou.

– A cidade não é bonita, à noite? – perguntou Carla, enquanto espreitava pela janela.

– De noite ou de dia, o Porto é sempre magnífico. E então quando estamos na companhia certa... – respondeu Ricardo e a escuridão dentro do carro não deixou ver Carla a corar.

Desceram até à Ribeira e Ricardo estacionou no Parque do Infante. Saíram do Parque e Carla perguntou onde iam. Ricardo não respondeu. À insistência de Carla, murmurou apenas ao seu ouvido, enquanto o seu braço esquerdo a prendia pela cintura:

– É uma surpresa...

Virando as costas à estátua do Infante D. Henrique, desceram até junto do Rio Douro e junto a ele caminharam, atravessando a Praça do Cubo, como é conhecida, até quase junto à Ponte Luís I. Debaixo das duas colunas que marcam o local onde uma vez existiu a Ponte Pênsil, desceram umas escadas de madeira e estavam num terraço em pedra mesmo sobre o Rio, onde existia uma esplanada. Disse então Ricardo:

– Achei que ias gostar de tomar café suspensa sobre a água. Acertei?

– Oh, Ricardo! Isto é maravilhoso! Estamos mesmo no meio do Rio! E a Ponte mesmo aqui ao lado!

Beijaram-se novamente e seguidamente caminharam até à extremidade da esplanada, ocupando a mesa mais afastada da margem e mais junto à Ponte.

A empregada era bastante gorda, mas simpática e bastante eficiente. Trouxe-lhes as bebidas em menos de nada e retirou-se, deixando a esplanada vazia para além de Ricardo e de Carla. Esta levantou-se e desculpou-se, dizendo que precisava de ir ao quarto de banho.

Enquanto Carla se encontrava no quarto de banho, a conversa da tarde com Filipe veio de novo à memória de Ricardo, mas este afastou-a. Não ia deixar essas preocupações estragar aquele momento, que queria só para si e partilhado apenas com Carla. “Estarei a fazer a coisa certa?”, questionou-se. Não teve tempo de encontrar a resposta, porque entretanto Carla reapareceu e Ricardo, observando-a enquanto ela atravessava a esplanada por entre as mesas vazias, sentiu-se levitar acima do chão enquanto se esvaziava das preocupações que o tinham assolado ainda há uns segundos. Era esse o efeito inebriante de Carla. Não havia dúvidas: estava apaixonado.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

42

Caiu um silêncio algo incómodo entre os dois. Filipe não sabia o que dizer e Ricardo estava mergulhado nos seus pensamentos. Lembrou-se do bilhete que escrevera a Carla no bar assinando com o nome de Miguel e viu que também isso encaixava: “Ela não lhe ligou porque não quer voltar a envolver-se com ele depois da história do Tomás.”

– Faz sentido.

– Que disseste? – indagou Filipe.

– Nada, nada! Estava aqui a pensar alto...

– Pois então, já que já fiz os meus estragos, acho que é a minha deixa para ir embora; a não ser que queiras que fique.

– Não, não é preciso, Filipe. Eu agora preciso mesmo dum tempo para pensar no que vou fazer à minha vida. Obrigado por tudo.

Levantaram-se e Ricardo acompanhou Filipe à porta do apartamento. Depois de Filipe sair, Ricardo correu ao telefone e marcou o número de Carla:

– Estou? Olá, Ricardo! – atendeu ela do outro lado, com voz jovial.

– Olá, Carla. Tens um tempo para mim hoje? – Ricardo esforçou-se por não deixar transparecer na voz o que lhe ia na alma.

– Hum... Depende de para que for... – notou-se uma certa marotice na sua voz.

– Para jantar é capaz de já estar um bocado em cima da hora... Tomamos um café depois? Onde tu quiseres – disse Ricardo rapidamente.

– Pode ser, mas escolhe tu o sítio.

– Então vou fazer-te uma surpresa...

Ricardo desligou então o telefone e foi para a cozinha preparar o jantar, mas a sua cabeça continuou na sala a ouvir as palavras de Filipe. “Eles saíram juntos da festa e só Deus sabe o que fizeram a seguir.“ Cortou-se enquanto preparava a salada. “Meu... estás metido numa embrulhada descomunal!” Queimou-se com a tampa da panela. “O que é que vais fazer, Ricardo?”

– Não sei! Não faço ideia do que fazer à minha vida!!!

Deu-se conta de que estava a gritar para os azulejos brancos rectangulares que cobriam as paredes da cozinha e deu-se também conta de que lhe cheirava a queimado:

– O bife! – exclamou, saltando para a frente do fogão. Apagou-o imediatamente e tirou a sertã de cima do disco, mas a perda era já total. Aborrecido e sem vontade de grelhar outro bife, saiu para jantar no restaurante da esquina.

Ricardo chamava-lhe o restaurante da esquina por nunca se lembrar do nome do estabelecimento e por este, de facto, ficar na esquina do prédio ao lado do seu. No mesmo ambiente em tons de vermelho serviam-se pratos da cozinha italiana e da argentina. O balcão, ao fundo, era de madeira castanha escura e tinha um empregado barbudo e não muito simpático, mas comia-se bem, rápido e barato, pelo que era uma boa alternativa para quando Ricardo não se sentia com vontade de cozinhar e não queria gastar muito tempo a jantar. As mesas eram quadradas e estavam cobertas com toalhas brancas. Apenas uma, para além daquela, junto à porta, onde Ricardo se sentou, estava ocupada, por um casal que ele reconheceu de se cruzarem no elevador do prédio onde todos moravam.

“Hoje em dia, é possível conhecer pessoas do outro lado do mundo, mas não conhecemos os nossos próprios vizinhos, que moram em frente a nós ou, no máximo, a um andar de distância. E, se os conhecemos, é sinal de que nos pegámos com eles por questões do condomínio. Assim vai a vida moderna...” Para afastar os pensamentos depressivos, Ricardo concentrou-se na ementa e acabou por pedir um bife igual ao que tentara cozinhar em casa. Depois de efectuar o pedido, continuou a olhar distraidamente para a ementa, mas a sua ideia estava de novo com Carla, donde saltitava periodicamente para Tomás e Miguel.

Depois de jantar, regressou a casa, trocou de roupa e eram horas de sair para ir ter com Carla. Ainda não tinha decidido o que ia dizer-lhe quando chegou à porta do seu prédio e tocou à campainha. Ela demorou pouco a descer e, mal abriu a porta, abraçou Ricardo e beijou-o intensamente.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

41

Hesitante, Ricardo dirigiu a Filipe um olhar carregado de nervosismo e dúvida. Eram amigos há anos e sabia que podia confiar nele como em si mesmo, mas algo o travava. Como lhe contaria que havia conhecido Carla daquela forma imprevisível e que, de modo ainda mais inesperado, se havia apaixonado por ela em menos de nada? Como explicaria ainda que Carla tinha um filho que era assustadoramente parecido com Miguel e que desconfiava que pudesse ser de facto filho do seu melhor amigo? Foi trazido à realidade pela voz firme de Filipe:

– Não desconverses, meu! Por que te lembraste disto agora e, pior, por que falaste comigo ao telefone como se disso dependesse a tua vida?

– Eia, que exagero! Não é assim nada de especial. – Optou por meia verdade: – É que encontrei a Freira por acaso (daí saber que ela se chama Carla e achar que já não temos idade para continuar a usar essas alcunhas idiotas dos tempos da escola) e depois pus-me a recordar os tempos em que ela andou no Colégio e fiquei com a pulga atrás da orelha a respeito dessa festa. Como o Miguel é o meu melhor amigo, quis tirar isso a limpo e, como sabia que tu estavas lá também e também conheces o Miguel, achei que talvez te lembrasses, visto que da memória dele se pode esperar tanto como da minha...

Filipe não disse nada, mas o seu rosto deixou transparecer um certo cepticismo. Para evitar mais perguntas, Ricardo atirou:

– Agora conta-me tu a tua viagem lá pela Escandinávia! E fala-me das suecas, pá! Fala-me das suecas!

– Olha, deixa-me que te diga que estes suecos são doidos...

– Então? – admirou-se Ricardo.

– Aluguei um carro para ir para a sede da empresa. Em conversa, disse ao homem que tinha de ir até Oskarshamn.

– Aonde!? – estranhou Ricardo.

– É a terra onde fica a sede lá da empresa com que estive a negociar. Mas pronto, eu digo-lhe que tenho de lá ir e responde-me ele: “vai gostar muito; o percurso tem uma natureza muito bonita”. E durante as cinco horas de viagem para cada lado tudo o que vejo são árvores e mais árvores à direita e à esquerda!

– Linda paisagem, sem dúvida! – riu-se Ricardo. – Olha, queres comer qualquer coisa? Nem te ofereci nada...

– Não, não, obrigado! Quero é que me contes a verdade, porque não gostei do teu tom de voz na mensagem que me deixaste no atendedor de chamadas, não gostei da tua expressão quando nos encontramos há pouco e estou a gostar muito pouco do facto de estares a tentar enrolar-me. Fala de uma vez, Ricardo!

Aí, Ricardo percebeu que não tinha mais por onde fugir. Fixou o olhar na janela e começou a falar.

– Aqui há uns tempos, pouco mais de dois meses, tive um acidente de carro; uma coisa estúpida. Eram dez da manhã e estava furioso porque tinha tido mais uma daquelas discussões absurdas com a Beatriz. De tão distraído que estava, nem me dei conta de que o semáforo tinha ficado vermelho e não parei. Quer dizer, parei contra o carro dela; foi então que a conheci. Era bonita, de uma beleza simples, mas confesso-te que, na altura, só vi nela uma oportunidade de engate, nada muito sério; até comentei isso com o Miguel, para ver se o fazia esquecer a Margarida. A Carla... – percebendo que Filipe se preparava para dizer algo, Ricardo pediu-lhe que o deixasse terminar de falar, e continuou: – Como a culpa do acidente tinha sido inegavelmente minha, assumi toda a responsabilidade naquele momento e trocamos os nossos contactos para resolvermos as questões referentes ao acidente. No próprio dia convidei-a para jantar, mas acabámos por combinar para o dia em que o Miguel teve aquele acidente no qual se partiu todo, e acabei por deixá-la pendurada por causa disso. Quando consegui jantar com ela descobri que afinal sentia algo mais por ela. Nos dias seguintes, não me saía da cabeça o tempo todo! Tinhas de conhecê-la para perceber... Fiquei completamente encantado. Só que entretanto descobri também que ela tem um filho de seis anos, o Tomás, um miúdo incrível, muito esperto e vivo... E muito parecido com o Miguel... Entendes agora o porquê de toda a minha preocupação e curiosidade? Pelas minhas contas o Tomás foi concebido por altura daquela malfadada festa de Carnaval – dizendo isto, Ricardo calou-se e desviou o olhar da janela, para fixar o rosto de Filipe.

Ao olhar o amigo, Ricardo percebeu que Filipe estava confuso e estupefacto com o que acabar de escutar.

– Então estás a dizer-me que achas que o Miguel pode ser o pai do filho da Freira? Desculpa... da Carla? E estás a dizer-me que estás apaixonado por ela? Meu... estás metido numa embrulhada descomunal! O que é que vais fazer, Ricardo? – perguntou Filipe em jeito de conclusão.

Ricardo sentia-se perdido. Não tinha certezas, nem poderia tê-las. Mas tudo indicava que Tomás era mesmo filho de Miguel.

– Não sei, Filipe. Juro-te que não sei. Se o Miguel for mesmo o pai do Tomás, tem direito de saber. Se eu lhe conto, perco a Carla para sempre. Estou, literalmente, entre a espada e a parede... – dizendo isto, deixou-se cair novamente no sofá.

– Nem sei que te diga, meu amigo. Não queria estar na tua posição. Mas olha, se queres um conselho, fala com ela primeiro. Se se confirmar, então falas com ele. É muito arriscado dizer qualquer coisa ao Miguel sem certezas. Nunca se sabe como ele pode reagir e, se não for verdade, crias uma confusão tremenda.

– Tenho de pensar muito bem no que vou fazer. Se bem que, juntando as peças todas do puzzle, não me parece restarem muitas dúvidas. As minhas suspeitas confirmam-se um bocadinho mais a cada dia que passa. O Tomás é mesmo filho do Miguel. Porra...

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

40

– Oh Ricardo, não sejas anjinho. Então não te lembras do escândalo que foi o simples facto da Freira, que era sempre casa-escola-escola-casa, ter aparecido na festa!?A miúda foi o centro das atenções o tempo todo! Agora soma dois mais dois...

Não foi preciso Filipe dizer mais nada, pois Ricardo completou imediatamente o esquema que o amigo acabava de lhe traçar.

– Mas então, se toda a gente sabia, como é que o Miguel dizia que não se lembrava e ninguém lhe disse que era verdade, lembrando-se ele ou não?

– Agora, sim, fizeste a pergunta certa – respondeu-lhe Filipe. – Como te disse, o Miguel veio falar comigo contando-me o que a Freira...

– Carla – corrigiu Ricardo instintivamente.

– Para mim há-de sempre ser a Freira; nem sei como te lembraste agora de lhe chamar Carla. Mas adiante! O importante para a história é que, por sorte, quando o Miguel ia a sair com a Freira, ou Carla, ou o que quiseres chamar-lhe, houve dois tipos que se pegaram à pancada no meio da pista de dança; não me perguntes porquê, porque acho que nem na altura cheguei a saber (eu estava cá em cima, no varandim). No alvoroço de separá-los e acalmá-los (ou simplesmente observar, que já se sabe que nestas situações há sempre um bando de mirones prontos a espicaçar), o Miguel acabou por sair com a dita cuja relativamente despercebido. Acho que só nós – eu e a malta que estava comigo lá no andar de cima – é que demos conta e, logo a seguir, jurámos não contar nada a ninguém, para não prejudicar a fama do Miguel no Colégio.

– Fama!? – exclamou Ricardo.

– Sim, fama! Já viste o que aconteceria à reputação do Miguel no Colégio se se soubesse que ele tinha saído da discoteca com o camafeu da Freira, a quem, de resto, tinha sido ele o primeiro a dar esse nome!? Claro que hoje isto parece um disparate, mas pensa: para miúdos do Secundário, isto era um assunto gravíssimo!

– Sim, entendo o que queres dizer. Quer dizer que vocês fizeram tudo por abafar a coisa...

– Isso mesmo...

– E conseguiram! Nem eu, o melhor amigo dele, soube de nada...

– Nem ele, o principal implicado, soube de nada, queres tu dizer!

– Hã!? – exclamou Ricardo, intrigado. Filipe explicou:

– O Miguel estava bêbado e, pelo visto, não se lembrava de nada do que se tinha passado naquela noite; pelo menos, não do essencial. De modo que, quando a Freira foi ter com ele num intervalo no primeiro dia depois do feriado, ele não percebeu o que estava a passar-se e não entendeu a atitude dela. Quando ele me contou, eu associei logo tudo, mas também não lhe disse nada. Limitei-me a insinuar que era um pedido de namoro da Freira saído do nada e ele engoliu o isco que nem um peixinho...

– Porquê!? – interrompeu Ricardo.

– Já que ele não se lembrava, não valia a pena estar a remexer na lama, não achas? De modo que o assunto ficou por ali. Eu e a malta que estava comigo na festa e os viu nunca mais falámos nisso e o Miguel até hoje deve continuar sem se lembrar de nada e a achar que a Freira se atirou a ele descaradamente do nada. – Filipe calou-se por uns instantes, mas logo acrescentou: – Mas vamos lá a saber: para que querias saber isto tudo?

Ricardo embatucou. “Conto-lhe a verdade?”, questionou-se. Optou por desviar o assunto:

– De certeza que mais ninguém viu?

– Houve uns rumores no Colégio, mas nós também nos encarregamos de abafá-los. Na altura dissemos que ela lhe tinha pedido boleia e ele tinha dito que sim, ou vice-versa, eu sei lá. Sei que foi uma história mal amanhada, mas o certo é que pegou e a coisa morreu por ali. Mas ainda não respondeste à minha pergunta...

– Qual pergunta? – Ricardo fez-se de desentendido, embora soubesse que não podia continuar o jogo do gato e do rato com Filipe. Mas precisava de ganhar tempo. “Conto-lhe a verdade ou não?”

terça-feira, 2 de outubro de 2007

39

Chegados à porta do apartamento, esperaram uns momentos que Ricardo a abrisse e entraram. Filipe soltou uma exclamação de surpresa.

– Ainda não tinhas cá vindo depois da reforma, pois não? Sabes como é, com a saída da Beatriz, não me apeteceu continuar a olhar para a mesma decoração todos os dias. Esta mudança foi providencial no que toca de esquecê-la. Acredita que não teria sido tão rápido se tivesse continuado a olhar para todos os objectos que faziam parte da nossa vida a dois – explicou Ricardo, continuando depois, sorridente: – Mas diz lá a verdade, ficou giro, não ficou?

– Sim, senhor, ficou muito bem! Contrataste um decorador?

– Qual quê!? – exclamou Ricardo, indignado. – Desenhei eu mesmo e escolhi eu os móveis! A única coisa que não foi feita por mim foi o trabalho propriamente dito, porque não tinha como carregar os móveis cá para cima. E, pronto, também não fui eu quem pintou as paredes.

– Sim, já sei da tua teoria de “cada macaco no seu galho”: tu não pintas paredes e os pintores não administram empresas. Acertei?

Ricardo sorriu:

– Nunca sei se estás a gozar-me ou se concordas comigo.

– Estou a gozar-te, claro! – respondeu Filipe e riram-se os dois. – Mas diz lá o que querias falar comigo, porque eu estou curiosíssimo e também preocupado. Nunca te vi tão apoquentado!

– Primeiro, deixa-me mostrar-te o resto do apartamento; também não tem assim tanto que se lhe diga, e depois sentamo-nos aqui e falamos, pode ser?

Filipe anuiu, pelo que viram rapidamente a nova decoração das quatro divisões que faltavam, incluindo o quarto-de-banho. Em cada uma, Filipe ia comentando o que via. Apreciou as paredes salmão do quarto de Ricardo (“mantiveste uma cama de casal, seu malandro”), o estilo moderno do escritório (“sabes que os ratos ópticos não funcionam sobre mesas de vidro? vais precisar dum tapete para o teu”), a mobília funcional da cozinha (“isto é mesmo mármore ou é a fingir?”; “é mesmo”), terminando, já de volta à sala, por dizer:

– Mas do que eu gosto mesmo é da vista. Ai, o que eu dava para morar em frente ao mar... E então que me querias?

– Senta-te, que eu explico.

Sentaram-se os dois nos sofás novos e Ricardo começou a falar.

– Sabes o Miguel?

– Sei, sim. Já não o vejo há uns tempos; que é feito dele?

– Por acaso, não anda muio bem. Vê lá tu que teve um acidente de carro e partiu-se todo, coitado.

Ricardo contou então por alto o acidente de Miguel e as suas consequências, fazendo o ponto da situação ao estado actual do amigo, mas tendo o cuidado de omitir as causas do mesmo. De qualquer forma, Filipe deu-se por satisfeito com a informação fornecida e não fez mais perguntas. Ricardo prosseguiu então:

– Agora vou puxar pela tua memória, já que a minha não dá para mais... Lembras-te daquela festa de Carnaval no Colégio, quando nós estávamos no décimo segundo?

– Sim, lembro-me, e, para começar, lembro-me de que não foi no Colégio... E também me lembro de por que é que tu não te lembras de mais nada... – os seus lábios contorceram-se num sorriso quase imperceptível à medida que dizia estas palavras.

– Sim, não foi no Colégio, isso ainda sei. O que eu já não sei é o que lá se passou e preciso de que me contes o que saibas a respeito do Miguel.

– Como assim? – estranhou Filipe.

– Oh pá! Indo directo ao ponto: o Miguel curtiu com alguém nessa noite?

– Que raio de pergunta, oh Ricardo! Que é que isso interessa agora, passados tantos anos?

– Interessa muito... Lembras-te da Freira?

Filipe mexeu-se no sofá ao ouvir falar da Freira:

– Oh, se lembro! Alguém esquece essa peça? – dito isto, riu-se, mas o seu risso soou algo desconfortável.

– E então?

– Então o quê?

– O Miguel e ela?...

– Para que queres saber isso agora?

– Porque é importante. Eles curtiram? – esta última pergunta saiu em voz mais alta do que Ricardo desejara.

Filipe estremeceu de novo no sofá, em parte devido à elevação da voz de Ricardo, em parte pelo desconforto que a pergunta lhe causava. Ainda que Ricardo fosse o melhor amigo de Miguel, contar-lhe o que sabia podia mudar muita coisa. “E daí, já passaram tantos anos, a reputação do Miguel já não vai ser prejudicada, como achávamos nós que seria nessa altura... Ai, estas loucuras de adolescente, e eu para aqui ainda todo preocupado em quebrar uma jura, que nem jura foi, a bem dizer, feita com dezassete anos!” Decidiu contar tudo:

– Mais do que isso: saíram juntos da festa e só Deus sabe o que fizeram a seguir. Quer dizer, além de Deus, a Freira também deve saber, porque estava mais ou menos sóbria, e na Quarta-feira seguinte, que foi quando as aulas recomeçaram depois do Carnaval, procurou o Miguel, achando que namoravam, ou coisa que o valha, mas ele, pelo visto, estava demasiado bêbado para se lembrar... – vendo a cara de Ricardo, reformulou: – Quer dizer, isto é o que eu suponho da junção dos factos. Mas cinjamo-nos a eles: o que é inegável é que o Miguel e a Freira saíram juntos da festa do Colégio, porque eu os vi, e mais não sei. O que sei depois foi o que o Miguel me contou a respeito dumas conversas que ele apelidou de estranhas da Freira na Quarta-feira seguinte a respeito de namorarem.

Nesse momento, Ricardo lembrou-se também de que Miguel lhe contara na altura qualquer coisa sobre esse assunto e que ambos se tinham rido do facto, pensando que Carla tinha pedido namoro a Miguel. O seu pensamento começou a divagar e já não estava a prestar atenção ao que Filipe dizia. Este apercebeu-se disso:

– Então? Estás com uma cara... O que se passa?

– Desculpa, estava aqui a pensar numas coisas... Mas dizes tu que viste o Miguel ir da festa com a Carla?

– Carla!? – estranhou Filipe.

– Sim, a Freira chama-se Carla. Não sabias?

– Não. Para mim sempre foi a Freira. Mas sim, vi.

– E depois o Miguel disse-te que ela foi falar com ele?

– Foi isso, estiveste atento ao que eu disse, parabéns – ironizou Filipe.

– E tu que lhe disseste?

– Hum... Isso faz-me voltar à festa. É que eu não fui o único a ver o Miguel.

– Ai não?

– Obviamente que não!

– Explica-me – pediu Ricardo.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

38

Atrapalhado com as suas próprias palavras, Ricardo encontrou a sua escapatória na entrada do Pai de Miguel na sala.

- Olá Tio! Como está? – disse Ricardo, levantando-se, assim que o Pai de Miguel entrou na sala.

- Olá Ricardo! Vai-se andando! Então, já meteste algum juízo na cabeça desse malandro? Imagina tu que diz que assim que começar a trabalhar vai voltar para casa dele.

- Papá, já tivemos esta conversa. Não vamos voltar ao mesmo assunto, por favor. Não me quero aborrecer. – disse Miguel, interrompendo o Pai, visivelmente desagradado com o eventual rumo que a conversa pudesse levar.

-Vá, vamos lá acalmar os ânimos e vamos almoçar. Não quero discussões, muito menos com o Ricardo cá em casa.- Disse a Mãe de Miguel para o Marido e para o Filho, dirigindo-se de seguida a Ricardo – Ai Filho, nem imaginas as saudades que eu tenho de quando vocês eram mais miúdos e faziam as vossas algazarras cá em casa. Tinha sempre a casa cheia de vida...

- Vá lá, Tia, não pense nisso. Nós crescemos, é normal que queiramos ter a nossa casa, o nosso espaço e conduzir a nossa vida. Qualquer dia, quando menos esperar, vai ser a algazarra dos netos que vai ter cá em casa. Vai ver. – e dizendo isto, Ricardo sentiu um aperto inesperado no peito. “Netos”, pensou para consigo mesmo, “Vamos lá ver se já não tem um e nem sabe”. Pensou em Carla e em Tomás, e sentiu vontade de fugir dali, ir ter com ela e esclarecer, de uma vez por todas, as dúvidas que o atormentavam. Mas sabia que não podia. E se aquilo fosse tudo uma grande e curiosa coincidência? E se Tomás não fosse filho de Miguel?

Ricardo passou todo o almoço perdido nos seus pensamentos. A certa altura, deu-se conta do olhar interrogativo de Miguel pousado em si. Desviou os olhos e percebeu que não poderia falar com ele. Não ainda.

Quando o almoço terminou, dirigiram-se todos, novamente, à sala de estar, para tomar café. Já num ambiente mais calmo, Miguel falou da vontade que tinha de voltar ao trabalho e da evolução do SOM, no qual havia aplicado grande parte do seu tempo de convalescença.

Embrenhado na conversa, que se havia tornado bastante agradável, Ricardo nem se deu conta quando o seu telemóvel começou a tocar. Ao pegar nele e ao ver o nome de Filipe a piscar no visor, Ricardo sentiu-se petrificar.

- Olá! Tudo bem contigo? Pensava que não ias cá estar até ao final da semana... – disse Ricardo a Filipe assim que atendeu a chamada.

- Olá! Comigo está tudo bem. Contigo é que parece que não... Era para ficar fora até sexta, mas consegui chegar a acordo com os tipos da empresa sueca mais rapidamente do que estava à espera, e consegui voltar mais cedo. Mas quando cheguei fiquei e ouvi a tua mensagem fiquei preocupado. O que é que se passa, meu?

- Falamos pessoalmente. Não é um assunto para falar por telefone. Como estás de tempo, hoje?

- Tenho o resto do dia e da noite livre. Ainda ninguém sabe que já voltei. Só te liguei porque me deixaste mesmo preocupado.

- Então podes encontrar-te comigo, daqui a meia hora, em minha casa?

- Poder posso, mas não se trabalha hoje? – perguntou-lhe Filipe, verdadeiramente preocupado pelo facto de Ricardo deixar o trabalho a meio da semana só para ter uma conversa.

- Isto é mais importante do que o trabalho. Então ficamos combinados assim. Daqui a meia hora encontramo-nos à porta de minha casa. Até já, um abraço. – depois de se despedir de Filipe, Ricardo despediu-se, também, de Miguel e dos seus Pais.

- Ficas a dever-me uma conversa... – relembrou-lhe Miguel.

- Descansa, que essa conversa vai chegar. – respondeu Ricardo, num tom enigmático, antes de sair e fechar a porta atrás de si.

Já a caminho de casa, Ricardo começou a pensar na melhor forma de perguntar ao amigo o que precisava de saber. Se tudo aquilo não passassem de meras coincidências, Filipe iria pensar que ele era doido. Teria de ter muito cuidado com as palavras.

Apanhou um trânsito inesperado, e quando chegou a casa já Filipe lá estava, à sua espera. Respirou fundo e saiu do carro.

- Bem, estás com uma cara... Parece que o mundo vai acabar. Afinal o que é que se passa, Ricardo?

- Vamos subir. Já te explico tudo. Mas, Filipe... esta conversa não pode, em hipótese alguma, sair das paredes da minha casa. Estamos entendidos?

Ao reparar no semblante carregado de Ricardo, Filipe anuiu e seguiu-o. Ou muito se enganava, ou aquela conversa era de extrema importância para Ricardo. Eram amigos há anos e nunca o havia visto daquela forma. Ficou verdadeiramente preocupado.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

37

Beatriz trazia um vestido branco com pintas pretas que lhe assentava primorosamente e parecia delicada como sempre, com o seu passo soberano e a sua pose de princesa de reinos perdidos no fim do mundo. De repente, enquanto atravessava a Avenida da Boavista, tendo à sua frente a Casa da Música, cujas paredes nuas de cimento reflectiam ferozmente a luz branca do Sol, o seu olhar cruzou-se com o de Ricardo, que olhava distraidamente os peões que atravessavam à sua frente.

Ao ver o fundo dos olhos verdes de Beatriz, donde parecia que emanava uma luz misteriosa, Ricardo sentiu-se invadir por um sentimento estranho. Ao mesmo tempo, duas imagens tomaram forma dentro de si – dum lado, Beatriz e a bela história de amor abruptamente interrompida naquele Sábado de Março em que ela saíra de sua casa e da sua vida sem dar qualquer explicação nem sequer olhar para trás; do outro, Carla e tudo o que a sua proximidade o fazia sentir. Ficou tonto por uns momentos, mas logo se recompôs e desviou o olhar. Optou por ignorá-la e nem sequer fez menção de cumprimentá-la – as palavras que ela lhe dissera ao telefone da última vez que tinham falado ainda lhe doíam:

“Com o capacete, ela não vai saber se a vi ou não,” tranquilizou-se.

O semáforo tornou-se verde e Ricardo avançou sem olhar para o passeio do outro lado, onde Beatriz parara uns momentos e se voltara para trás, ficando a seguir a sua mota com o olhar. Quando esta se perdeu no trânsito da Rotunda, Beatriz retomou o seu caminho em direcção à entrada do parque de estacionamento subterrâneo.

Ricardo, por sua vez, continuou o seu caminho e só voltou a parar em frente à casa de Miguel. Apeou-se, deixou a mota junto ao passeio e dirigiu-se para a entrada do prédio, tocando à campainha. Quem atendeu foi a mãe de Miguel, que logo o mandou subir.

Ao entrar no apartamento, Ricardo foi recebido pela mãe de Miguel, que tomou o seu blusão e o pendurou no bengaleiro. Ricardo viu a mesa já posta na sala, mas não viu o amigo.

– Onde está o Miguel? Não deixou aquele malandro sair, pois não?

– Não, claro que não, ora essa! – exclamou a mãe.

Nisto, Miguel entrou no vestíbulo, sorrindo enquanto metia a sua colherada na conversa:

– Eu bem tentei, mas parece que a minha lábia já não é o que era. Ou então a minha mãezinha tornou-se imune aos choradinhos do filhinho... – disse enquanto abraçava a mãe. Depois, virando-se para ela com ar muito sério, acrescentou: – Dona Luísa, isto são modos de receber uma visita? Manter assim uma pessoa de pé na entrada sem a convidar a sentar-se um pouco enquanto o almoço não é servido? Ai, ai, ai, estou a ver que está a esquecer as mais elementares regras de boa educação... – depois, encaminhou Ricardo para a sala de estar enquanto lhe dizia: – Entra, pá, a casa é tua; já lhe conheces os cantos e não há cá cerimónias contigo! O meu pai ainda não chegou, por isso ainda vamos ter de esperar pelo almoço. Não vieste com pressa nem fome, pois não?

– Não, não! Tenho todo o tempo do mundo! – apressou-se a dizer Ricardo.

– Então óptimo, senta-te e podemos conversar um bocado enquanto esperamos.

– E eu volto já, vocês os dois conspirem à vontade – brincou Luísa.

– Podes crer que temos muito para conspirar! – exclamou Miguel sorrindo. Porém, ao voltar-se para Ricardo, já não estava tão sorridente:

– Então, meu caro, é agora que vais explicar-me tintim por tintim a nossa conversa do outro dia?

Ricardo sentiu-se desfalecer.

– Bem, meu caro, não é nada de importante. Como te disse, é um assunto de mulheres. Depois da Beatriz, ainda não tinha conhecido assim nenhuma extremamente interessante...

– Estou a ver que te caçaram – interrompeu-o Miguel.

– Não é nada disso, pá! – exasperou-se Ricardo. – O problema é que esta mulher tem o seu quê. Mas fala-me antes de ti; como te sentes?

– Lindamente! Para a semana já posso ir trabalhar. E não tarda nada volto a morar na minha casinha, que a minha mãe é muito querida, mas sufoca-me um bocado; tu lembras-te de por que saí de casa, não lembras?

– Sim, claro que lembro, e compreendo-te. Provavelmente, na tua situação faria o mesmo. Mas conta-me: a respeito da Margarida há novidades? Voltaste a vê-la ou a falar com ela?

– Não, nem me interessa muito, sinceramente.

– Folgo em ouvir isso, meu caro; nem imaginas quanto! Bem sabes que eu nunca fui muito com a cara dela e muito menos achei bem que andasses por aí a chorar pelos cantos depois que acabou; ainda para mais porque foste tu quem acabou e um homem tem de saber o que quer da vida, não é andar para a frente e para trás e nunca mais tomar uma decisão.

– Pois, mas tu sabes como eu sou: decisões não são comigo. Eh, pá! Mas não desconverses, que não foi para falar da Margarida que cá vieste! Explica-me lá essa tua história de saias.

Ricardo ficou calado por uns longos segundos, pensando no que haveria de dizer. Sabia que era agora ou nunca, mas não sabia como começar. Levantou-se e deu dois passos; voltou para trás e tornou a sentar-se. Engoliu em seco, inspirou fundo e disse:

– Na verdade, a minha história de saias não tem muito que se lhe diga, mas gostava de te fazer uma pergunta – mal acabou de pronunciar estas palavras, arrependeu-se imediatamente: “Não podias ter-te comprometido mais explicitamente.”

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

36

Aquele dia solarengo de Verão, em que nem uma só nuvem ofuscava o azul do céu, convidava a ir até à praia, mas Ricardo não podia fazê-lo, nem se sentia com disposição para tanto. Tinha optado pela mota, uma das suas paixões, para percorrer o caminho até ao seu escritório e ia serpenteando por entre os carros mal estacionados que abundam nas ruas e atrapalham o trânsito nas já de si estreitas ruas de Gaia. Chegou ao escritório à hora do costume, pouco passava das nove e meia, e dirigiu-se ao seu gabinete no sétimo andar. Dirigiu-se à janela, abriu-a e inspirou fundo. Espreitou lá para baixo e sentiu-se mais calmo, como se encontrar-se sete pisos acima do chão lhe desse mais segurança. Caminhou então para a secretária e sentou-se.

A secretária de Ricardo encontrava-se muito bem arrumada, sem um papel sequer fora do sítio; o pai sempre lhe dissera que ter a secretária cheia de papéis dispersos desordenadamente não é sinal de que se é muito importante ou se tem muito trabalho, mas sim de que não se é organizado, e isso nunca pode causar boa impressão nos clientes. Às vezes acrescentava que, numa empresa como a sua, a primeira impressão era importantíssima e que dar uma imagem de organização era meio caminho andado para conquistar a confiança do cliente.

Naquele dia, porém, não foi boa a impressão que Ricardo causou nos clientes. Por duas vezes se viu obrigado a pedir a um que repetisse o que estava a dizer, pois os seus pensamentos estavam longe dali. Pareceu-lhe que a manhã passou a voar, pois, quando olhou para o relógio, eram já horas de sair para ir ter com Miguel.

A manhã de Carla também passou a voar, mas a causa era outra. Sentia-se nas nuvens, depois do jantar do dia anterior com Ricardo. Apenas um pequeno senão ensombrava o seu estado de espírito: Ricardo era o melhor amigo de Miguel e Carla não queria imaginar qual seria a sua reacção ao saber da verdade sobre a paternidade de Tomás. Apesar de o sentir próximo, temia que tal facto pudesse afastá-lo de si e, o que era pior, que Ricardo contasse tudo a Miguel e isso pudesse levá-la a perder o seu filho. Decidiu, todavia, preocupar-se com essa questão mais tarde e deixar-se levar pelo momento, pois sentia-se feliz como já há muito não se sentia.

Depois de levar Tomás ao Colégio, telefonou a Francisca e convidou-a para se encontrar consigo:

– Já que não posso ir à festa e não te vejo há muito tempo, estava a pensar em ir fazer umas compras; nada de especial, só para sair, ver gente e pôr a conversa em dia. Que dizes?

– Acho uma óptima ideia, só que estou a trabalhar e não posso sair. Que tal à hora de almoço? Vens cá ter à Baixa e mostro-te um restaurantezinho que conheço por aqui que é de se lhe tirar o chapéu...

– Está combinado, então. A que horas?

– Eu saio à uma, por isso pode ser a essa hora. Sabes onde fica o meu emprego, não sabes?

– Não; dizes-me, por favor?

– É fácil!

Francisca explicou então a Carla como chegar ao seu local de trabalho, após o que se despediram e desligaram.

Mesmo sem a companhia da amiga, Carla foi para o centro comercial e aí passou o resto da manhã a passear. De cada vez que recordava o dia anterior, bailava-lhe nos lábios um sorriso e tinha vontade de cantar. Sentia que irradiava felicidade e que as outras pessoas com quem se cruzava, de certa forma, partilhavam consigo a sua felicidade. Passava mais ou menos meia hora do meio-dia quando Carla saiu do centro comercial para ir almoçar com Francisca.

Pouco antes de Carla sair do centro comercial, porém, já Ricardo tinha partido para casa de Miguel, não sem antes ir buscar o seu regador para dar de beber à planta que tinha no escritório. Depois disso, chamou o elevador, desceu até à cave e saiu do edifício montado na sua mota, seguindo em direcção ao Porto. A curiosidade era cada vez maior, mas o receio crescia ao mesmo ritmo. Não sabia como abordar o assunto sem ser forçado a revelar o seu envolvimento com Carla, o que não desejava, por um lado, por nem há dois meses e meio ter encorajado o amigo a aproximar-se dela, mas, sobretudo, por causa das respostas que poderia obter às suas perguntas. Tinha medo do que o seu melhor amigo pudesse dizer-lhe...

Ao chegar à Praça Mouzinho de Albuquerque, ou Rotunda da Boavista, como é carinhosamente conhecida pelos habitantes tripeiros, Ricardo parou num semáforo e viu alguém que já não via há muito tempo.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

35

No dia seguinte, Ricardo acordou pensando no que havia de dizer a Miguel, dando-se conta, pela primeira vez, do quão delicada era a sua situação. Por um lado, não tinha certezas e não via outra forma de conseguir clarificar tudo que não esperar por Filipe, mas, por outro, tudo era demasiada coincidência. Tentou lembrar-se melhor da festa do Colégio, mas tudo o que lhe veio à memória foram fragmentos distorcidos, pedaços de sons, cheiros e imagens daquilo que vivera e jurara nunca mais viver.

Recordou o último momento de lucidez, o Toni a chegar-se a si e a perguntar-lhe se já alguma vez tinha fumado ganza, ele a dizer que não e o Toni a perguntar se queria experimentar. A princípio, Ricardo recusara, mas o Toni insistira, dizendo que não se iria arrepender, e Ricardo acabara por aceitar.

– Como és maçarico, enrolo-to eu, mas depois lembra-me de te ensinar, que não sou o teu papá para te andar a fazer os charrinhos.

A princípio, fora como o Toni dissera que ia ser: a música tornara-se mais interessante e estava mesmo a convidar à dança, a sua cerveja parecia mais saborosa e a festa estava melhor e mais colorida do que nunca. As luzes da discoteca inebriavam-no e invadiam-no, dando-lhe uma sensação de invulnerabilidade. Sentia se bem e com uma imensa vontade de sorrir a toda a gente à sua volta, sorriso que rapidamente se tornou uma gargalhada incontrolável. Quanto mais ria, melhor se sentia consigo mesmo; naquele momento era o rei da festa e o dono do mundo. Apetecia-lhe comer e dançar, dançar e rir, rir e saltar, até ao primeiro arranco. Pouco depois, as luzes da discoteca cegavam-no enquanto procurava cambaleando o quarto de banho, as pessoas atravessavam-se no seu caminho olhando-o com ar ameaçador e Ricardo sentia-se vergar sob o seu peso. Gatinhou pelo meio da pista de dança durante uma eternidade até sentir uma mão a agarrar as costas da sua camisola. Não se lembrava do que se passara depois; a imagem seguinte era passada num cubículo azul debruçado sobre uma sanita pestilenta onde verteu pela boca as profundezas da sua alma, apagando-se a sua memória completamente até ao final da manhã do dia seguinte.

Acordara em casa da irmã mais velha do Toni, que já tinha os seus quase trinta e morava sozinha num apartamento em S. Mamede.

– Olá! Sentes-te bem, maçarico? – perguntara-lhe o Toni.

– Dói-me um bocado a cabeça, mas de resto estou bem. Onde estou?

– Descansa, estás em casa da minha mana mais velha; achei que o teus velhos não iam curtir ver te entrar em casa ganzado e todo podre a meio da noite.

– E não te preocupes que eu telefonei-lhes a avisar que ias dormir fora – acrescentara a irmã do Toni da ombreira da porta do quarto.

Ricardo desistiu de tentar lembrar o que quer que fosse sobre Miguel e Carla na festa do Colégio: “definitivamente, a única coisa de que me lembro daquela maldita noite é da porcaria do charro do Toni. Maldita a hora em que lhe disse que sim!”

Com este pensamento se levantou e foi para o quarto de banho. Arranjou-se, comeu uns cereais de chocolate como pequeno-almoço e saiu para o escritório. Ainda tinha uma manhã pela frente antes de almoçar com Miguel e já se sentia a perder a coragem.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

34

Quando, finalmente, aquele beijo começou a acalmar e o abraço que os envolvia ficou menos apertado, Carla tentou recuar e libertar-se dos braços de Ricardo que, sem grande esforço, não permitiu que isso acontecesse. Com suavidade, Ricardo reaproximou-a de si e voltou a beijá-la. Por instantes pensou que Carla iria tentar afastá-lo, mas ela não o fez. Quando sentiu, novamente, o calor do abraço apertado de Ricardo e o toque apaixonado do seu beijo, Carla perdeu qualquer réstia de força para lhe resistir que pudesse, ainda, existir no seu corpo. Naquele momento estavam ambos completamente envolvidos um no outro, como se de magia se tratasse.

Mas o momento rapidamente se quebrou com o toque do telemóvel de Ricardo. Quando viu o nome de Miguel piscar no visor do seu telemóvel, Ricardo sentiu um arrepio de frio percorrer-lhe o corpo inteiro. Parecia um aviso de que não devia envolver-se com aquela mulher. A contragosto, e devido à insistência de Miguel, acabou por atender o telemóvel.

- Olá! Está tudo bem?

- Estava aqui a pensar na nossa curta e nada esclarecedora conversa de hoje à tarde, e resolvi ligar-te para saber o que te atormenta assim tanto. – disse-lhe Miguel em tom de brincadeira.

Ao escutar estas palavras, Ricardo olhou para Carla com um semblante enigmático e triste, ao mesmo tempo. Os beijos que acabava de partilhar significavam muito mais do que um simples desejo. Havia neles algo mais profundo e intenso do que um mero e saciável desejo. Um sentimento que há muito Ricardo não se atrevia a sentir. Só não sabia se aquela seria, ou não, a mulher certa para voltar a fazê-lo sentir aquele tipo de sentimentos.

- Falamos depois, com calma. Não são conversas para se ter ao telemóvel, não achas Miguel?

Quando Ricardo pronunciou o nome de Miguel o olhar de Carla escureceu, como se uma nuvem o tivesse ensombrado de um momento para o outro. E, naquele instante, Ricardo teve certeza daquilo de que desconfiava. Só precisava de confirmar com as fontes certas. Pensou em Filipe, e nos tempo que ainda faltava para ele regressar a Portugal. Apenas ele poderia, com toda a certeza, contar-lhe o que havia acontecido na noite da Festa de Carnaval.

- Se achas melhor assim, também não vou insistir. Mas deves-me uma conversa, não te esqueças. – e dizendo isto, Miguel fez uma pausa prolongada, como se procurasse as palavras certas para o que queria dizer a seguir – Eu também preciso de falar contigo. Também há algo a atormentar-me. Tenho tido uns pesadelos terríveis com a Margarida e com o filho dela... Mas tens razão, não são conversas para se ter ao telemóvel. Almoça cá em casa amanhã e conversamos melhor. Que dizes? A minha Mãe ia adorar.

- Combinado. Amanhã estou aí às 13hs para almoçarmos e conversarmos. Temos mesmo muito que conversar. Agora vê lá se vais descansar. Não te esqueças do que o médico disse: nada de avarias durante, pelo menos, uma semana.

E dizendo isto desligou o telemóvel e voltou a fitar Carla. Aquele telefonema de Miguel tinha arruinado, por completo, o momento tão bonito que haviam acabado de partilhar. Nem um nem outro se sentiam à vontade para se perderem nos braços um do outro naquele instante.

- Vamos jantar? – propôs Ricardo.

Carla anuiu, e sentaram-se à mesa. O jantar decorreu com calma. O tratamento formal entre ambos caiu definitivamente. Depois daqueles momentos, interrompidos pelo telefonema de Miguel, não fazia sentido continuarem a tratar-se com a deferência de dois estranho.

Quando deixou Carla em casa, Ricardo sentia-se no centro de um furacão. Com a cabeça cheia de questões para as quais não tinha resposta, e dúvidas que, naquele momento, lhe pareciam insanáveis, Ricardo dirigiu-se a casa e, assim que lá chegou, entrou num duche a escaldar, como se procurasse exorciizar tudo o que naquele momento lhe roubava, de forma violenta e vil, a possibilidade de ser feliz. E foi naquele momento que Ricardo percebeu que ao lado de Carla seria feliz. Mas será que a vida lho permitiria? Com esta questão a dominar-lhe os pensamentos, encostou-se na cama e adormeceu.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

33

Contra a sua vontade, Miguel acabou por ir para casa dos pais. Depois de sete meses a viver na sua própria casa, sentia-se estranho por regressar à dos Pais, ainda por cima naquelas condições. Mas o médico havia sido peremptório ao dizer-lhe que teria de ficar em repouso durante pelo menos mais uma semana, e que não poderia fazer esforços. Perante tais argumentos, e por mais que lhe tivesse custado, havia sido obrigado a ceder. Mesmo assim, mesmo sendo obrigado a estar em casa dos Pais por força das circunstâncias, Miguel não conseguia sentir-se mais confortável.

Depois de estar instalado, ficou a sós com Ricardo. Olhou o amigo e, sem qualquer hesitação, perguntou-lhe o que se passava.

- Vais dizer-me o que se passa, ou não? Pareces uma barata tonta, aí a andar de um lado para o outro. Fala de uma vez!!!

Ricardo respirou fundo, como se procurasse coragem para começar a falar. Tinha receio das perguntas, mas conseguia tê-lo mais das respostas. Voltou a respirar fundo, mas acabou por perder a coragem.

- Não é nada relevante. Falamos depois. Mulheres...

- Não me digas que é a Beatriz outra vez?

- Não, nada disso. Depois conto-te tudo, com calma. Agora precisas de descansar. Vou-me embora! Vê lá se não te metes em aventuras, se não em vez de uma semana só de cama, ainda tens de ficar mais um mês. Cuida-te, rapaz – e, dizendo isto, Ricardo saiu do quarto do amigo, despediu-se rapidamente dos seus Pais e saiu para a rua.

Precisava de pensar. Todas aquelas dúvidas o atormentavam. Fechou os olhos e pensou em Carla. Precisava de a ver. E sabia que não ia conseguir resistir muito mais tempo. Pegou no telemóvel e ligou-lhe. Do outro lado tocou uma, duas, três vezes, e à quarta Carla atendeu.

- Olá Ricardo. Não estava à espera que me ligasse. Não depois da forma como nos despedimos, da última vez...

- Estou com saudades suas, Carla. Preciso de a ver. Não diga que não, por favor.

- O Tomás vai jantar com o meu Pai hoje. Podemos jantar. O que me diz?

- Às 19h30 passo aí. Jantamos em minha casa. Pode ser?

Apesar de estranhar o convite para jantar na casa de Ricardo, Carla aceitou-o.

Quando desligou o telefone deu-se conta de que eram 18h30. Já só tinha uma hora para se despachar. Agora que estava em casa, pelo menos até as suas aulas na Faculdade começarem, tinha muito mais tempo livre. O regresso do Pai à empresa tinha sido providencial.

Aquela hora passou, e Ricardo deu-lhe um toque para avisar que havia chegado e estava à sua espera. Desceu e entrou no carro dele. Sentiu-se tremer como se fosse uma adolescente. Não sabia o que esperar daquele jantar. Teria de esperar para ver.

Ao entrar em casa de Ricardo, foi surpreendida com a mesa posta e as velas a arder. Voltou-se para trás e olhou Ricardo nos olhos. E, naquele momento, o mundo à sua volta desapareceu. Quando se deram conta estavam nos braços um do outro, envolvidos num beijo intenso e profundo, que nenhum dos dois tinha vontade que terminasse.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

32

Miguel estava de novo na sala, sentado no sofá em frente à televisão, rodando a sua aliança no dedo e olhando distraidamente para o ecrã do aparelho. De vez em quando, olhava para um bebé que brincava ali perto, até que se levantou e pegou nele. O bebé, como era seu hábito sempre que Miguel lhe pegava começou a chorar, mas desta vez Miguel estava determinado: levou o bebé para o quarto de banho, deitou‑o na banheira, fechou o ralo e abriu a água fria. A princípio, o bebé chorou mais alto e mais convulsivamente, mas, pouco a pouco, foi perdendo as forças à medida que a água subia e Miguel o mantinha deitado no fundo da banheira. Passados alguns minutos, o bebé estava totalmente coberto por água. Já não chorava; Miguel sentiu-se aliviado por segundos antes de a angústia sobrevir e o fazer acordar sobressaltado.

Há três semanas que não tinha aquele sonho; não percebia por que tinham as imagens que julgava para sempre desaparecidas da sua mente decidido voltar a torturar o seu sono e por que se haviam permitido desta vez ir mais longe do que foram todas as outras. Espreitou o seu relógio na mesinha de cabeceira; passava pouco das dez horas.

Ao mesmo tempo, Margarida acordava da anestesia:

– Como correu? – perguntou, ainda com a voz entaramelada, à enfermeira que se encontrava mais próximo de si.

– O senhor doutor já vem falar consigo – respondeu esta secamente.

Aquela terça-feira amanhecera cinzenta e chuvosa e assim continuara da parte da tarde e Ricardo sentia-se cinzento e triste como o tempo que fazia do lado de fora da janela do seu escritório.

“Nem parece que estamos na Primavera!”, pensou para consigo mesmo.

As dúvidas sobre a paternidade de Tomás assombravam-no desde a Sexta-feira anterior. Carla conhecia Miguel; haviam sido colegas de turma, mas isso poderia não querer dizer nada. Estava confuso, sem saber o que pensar ou o que sentir. Tudo aquilo lhe parecia demasiado estranho e seria uma assombrosa coincidência se as suas suspeitas se confirmassem. Tentou limpar a mente daqueles pensamentos, mas qualquer coisa o prendia à imagem de Carla. Ansiava por voltar a vê-la, mas sabia que não devia, pelo menos não naquele momento. Precisava de organizar as ideias e de falar com uma pessoa: Filipe podia ajudá-lo, mas estava fora de Portugal até ao final da semana seguinte, pelo que teria de esperar até ao seu regresso.

Não se deu conta de quando o seu telemóvel tocou. No visor piscava o número de casa dos pais de Miguel. Quando finalmente atendeu, ouviu do outro lado a voz da Mãe do amigo, que o informou de que Miguel teria alta do Hospital daí a quatro dias. Finalmente chegavam as boas notícias; estava mesmo a precisar delas! Agora tinha de pensar em como abordar o assunto com Miguel, para ele não desconfiar de nada. Precisava de ter certezas absolutas, mas tudo o que tinha naquele momento eram meras suspeitas, fortes e com algum fundamento, era certo, mas, ainda assim, apenas suspeitas.

Decidiu sair do escritório e ir a qualquer sítio. Não sabia bem onde, pelo que acabou sentado num banco dos Jardins do Palácio de Cristal. Era o seu refúgio, sempre que não tinha mais para onde ir. Já conhecia cada recanto de cor, mas nunca se cansava desse lugar mágico.

“Hei-de cá trazer a Carla”, pensou, e logo continuou: “Mas antes tenho de tirar a história do Tomás a limpo. As parecenças são gritantes.”

Como nada mais podia fazer para além de esperar, assim fez durante os dias que se seguiram, até que Segunda-feira chegou e, com ela, a alta de Miguel. Ricardo foi ter ao Hospital, onde já se encontravam os pais do amigo, e vieram até casa destes. Miguel estava radiante por poder finalmente sair do quarto onde estivera fechado durante um mês certinho.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

31

Após a saída de Tomás para ir experimentar a sua nova camisola, sobreveio um silêncio incómodo, que Carla cortou, tentando puxar um novo assunto depois da conversa que acabaram de ter:

– Papá, não imaginas como a notícia de que reassumirás o teu cargo me deixa contente! Eu sempre soube que ias dar a volta por cima e regressarias à empresa. Além do mais, eu não tenho jeito para aquilo. Ainda bem que não quis tirar Gestão; iria ser muito infeliz!

Acabando de dizer isto, Carla lembrou-se subitamente de Francisca e do seu convite para a festa do Colégio e lembrou-se também de que ficara de dar uma resposta à sua amiga até ao dia anterior. Aproveitando essa tábua de salvação para abandonar aquela situação constrangedora, pediu desculpa ao pai e dirigiu-se ao telefone, marcando o número de casa da amiga.

Quem atendeu foi António, o marido de Francisca. Carla estranhou-lhe a voz, pois era apenas a segunda vez que falavam e Carla nem o conhecia ainda pessoalmente – estavam casados há apenas quatro meses e Francisca e Carla ainda não tinham estado juntas depois disso, nem Carla fora ao casamento, por este ter calhado uns dias depois do trágico acidente que vitimara a sua mãe e os seus avós –, pelo que, a princípio, julgou que enganara no número. Após o primeiro momento de confusão, os dois interlocutores reconheceram-se e Carla pediu para chamar Francisca.

– Está?

– Olá, Francisca! Como estás?

– Bem, e tu?

– Também. Estou a ligar-te por causa da festa.

– Sim, sim! Sempre podes ir?

– Infelizmente, não, minha querida. Nessa altura estarei em Lisboa a tratar duns assuntos que lá deixei pendentes – mentiu Carla. – Desculpa não te ter avisado logo ontem, como te tinha prometido, mas foi um dia louco e acabei por esquecer-me. Não ficas zangada?

– Claro que não! – respondeu Francisca, mas Carla notou na sua voz um certo desapontamento e sentiu-se mal por isso.

Francisca foi a única amiga que Carla fez durante os três anos e meio em que frequentou o Colégio, a única que se aproximou de si quando todos os restantes colegas a punham de parte por causa da sua maneira de ser. A amizade entre as duas raparigas começou no dia em que Carla esteve doente e faltou às aulas. Ao fim da tarde, Francisca parou em sua casa para deixar ficar as fichas que os professores tinham distribuído nesse dia, bem como cópias dos apontamentos nos seus cadernos. Quando, no dia seguinte, já melhor da gripe, Carla regressou ao Colégio, correu a agradecer a Francisca e insistiu no convite para lanchar em sua casa depois das aulas. Francisca acabou por aceitar, sob o olhar atento do resto da turma, que não compreendia como alguém poderia querer lanchar em casa da Freira. A partir desse dia, as duas raparigas foram-se aproximando e descobrindo gostos e interesses comuns e maneiras de ser que, afinal, não eram tão distantes quanto poderia parecer e assim surgiu uma amizade que perdurou mesmo após a ida repentina de Carla para Lisboa. Esse foi um momento difícil na relação entre ambas, visto que Carla não pôde contar a história de Tomás e por que fugira para Lisboa à amiga e Francisca, a princípio, ressentiu-se disso. Porém, acabou por aceitar, embora sem compreender totalmente, a opção de Carla em manter segredo a respeito dos motivos que a levaram para Lisboa tão apressadamente e guardou as suas suspeitas sem nunca tentar confirmá-las, nem confrontando Carla directamente, nem indagando outras fontes; preferiu esperar que a amiga se decidisse ela mesma a contar-lhe a verdade. Quando Carla se mudou de novo para o Porto, Francisca foi a primeira pessoa a saber desse regresso e a amizade que as unia, entretanto arrefecida, como necessariamente acontece a duas pessoas que se encontram a trezentos quilómetros de distância, mas nem por isso enfraquecida, manteve-se com todo o seu vigor.

Por ser a melhor amiga de Carla no Porto – e uma das poucas do tempo do secundário –, sonegar a verdade a Francisca era imensamente custoso, mas tinha de ser. Quanto menos pessoas soubessem da verdadeira história de Tomás, melhor. Assim, as duas despediram-se e Carla desligou o telefone, acabrunhada.

O resto de Sábado e todo o dia de Domingo decorreram sem grande história. Segunda-feira de manhã, com um peso na alma, Margarida telefonou para o consultório do seu ginecologista e pediu para marcar uma consulta urgente. A telefonista informou-a de que só poderia marcar para daí a uma semana, pois antes disso o senhor doutor não tinha vaga, e perguntou-lhe se podia ser no dia vinte e quatro às quatro.

Margarida sobressaltou-se: se só fosse à consulta na data proposta, sobrava-lhe muito pouco tempo antes de findar o prazo!

– E não posso tentar a minha sorte antes? Pode ser que falte um doente...

– Sim, pode tentar. Venha depois de amanhã, então, que está marcada uma doente que tem um filho pequeno que volta e meia está doente e já não é a primeira vez que falta à consulta para ir com o filho para a Urgência.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

30

Aquele sábado de Julho havia amanhecido frio e nublado. Com o céu a ameaçar chover a qualquer instante, Carla abraçou-se a si mesma e pensou no que se aproximava, sentindo, de seguida, um arrepio intenso que a assustou.

Andava a adiar aquela conversa desde o dia em que descobrira que estava grávida, mas tinha plena consciência de que não o podia fazer mais. Era imperativo contar a verdade ao Pai. E sabia que não seria uma conversa fácil, acima de tudo porque lhe havia mentido ao dizer-lhe que não se lembrava de nada do que havia acontecido naquela noite.

Quando o Pai chegou, Carla respirou fundo e pediu-lhe que se sentasse.

_ Papá, precisamos de ter uma conversa muito séria... Mas peço-te que me ouças até ao fim, sem interrupções, por favor. – pediu Carla ao Pai, em jeito de súplica.

Fernando anuiu, com a calma e a serenidade que faziam dele o homem de força e coragem que sempre havia sido toda a sua vida.

E então, num rasgo de coragem misturado com um desespero latente, Carla abriu a alma ao Pai e contou-lhe toda a verdade. Falou-lhe da festa. Falou-lhe dos olhos verdes e do sorriso malandro de Miguel. Falou-lhe da rivalidade que sempre existira entre ambos. Falou-lhe da alcunha que lhe havia dado. Falou-lhe do misto de emoções quando ele, naquela noite, pronunciou o seu nome. Contou-lhe, meio envergonhada e sem muitos detalhes, como tudo tinha acontecido, e como, no dia seguinte, Miguel não se lembrava de nada do que se havia passado entre ambos. Explicou-lhe, ainda, que, no dia seguinte, ao chegar ao Colégio, Miguel não se lembrava de nada do que havia acontecido. Falou-lhe ainda do desespero que senti ra ao descobrir que estava grávida, e da necessidade de mentir e dizer que não revelar a identidade do Pai de Tomás. Falou ainda do reencontro com Miguel naquele Bar, e no bilhete que ele lhe havia feito chegar pelas mãos do Barman, e que, dias depois, deitara fora. Falou-lhe da assustadora coincidência de ter sofrido aquele acidente com Ricardo e de este ser nem mais nem menos do que o melhor amigo de Miguel. Falou-lhe ainda do que começava a sentir por Ricardo e da assustadora verdade nas suas palavras da noite anterior. Por fim revelou-lhe o seu mais intimo receio – que Miguel soubesse que era Pai de Tomás e quisesse tomá-lo de si.

Quando acabou de falar, Carla esperou que o Pai dissesse alguma coisa. E aqueles trinta segundos em que o Pai manteve o seu silêncio sepulcral pareceram-lhe uma eternidade.

- Minha Filha, olho para ti e vejo a mulher forte que tanto admiro e a menina frágil e perdida que com 16 anos engravidou. Achas mesmo que durante todos estes anos nem eu nem a tua Mãe iríamos fazer o que quer que fosse para saber quem era o Pai do nosso neto? Subestimaste-nos, minha querida. Levou algum tempo, cerca de dois meses e meio, a descobrir toda a verdade, mas chegamos lá. Nunca te contamos porque sabíamos que isso ia fazer-te mal. Éramos teus Pais e queríamos-te feliz. É certo que nos entristecia a tua falta de confiança em nós, mas fomos capazes de compreender os teus “porquês”, e de proteger os dois bens mais precioso que tínhamos – tu e o Tomás. – disse-lhe o Pai, contra todas a expectativas. Carla jamais seria capaz de imaginar aquilo que acabar de ouvir da boca do Pai.

- Mas, se vocês sempre souberam, porque é que permitiram que o Eduardo assumisse a paternidade do Tomás?

- Para vos proteger aos dois. Não entendes? Se o Tomás fosse registado com pai desconhecido haveria lugar a uma averiguação oficiosa de paternidade, e a verdade que tu tanto temias acabaria por vir ao de cima. Informei-me junto dos nossos Advogados, e eu e a tua Mãe chegamos à conclusão de que a melhor solução seria aquela, e não outra.

- Percebo... Então vocês sempre souberam que eu... que eu... vos menti... – disse Carla com o último fio de voz que lhe restava.

- Sempre soubemos, mas sempre percebemos. Talvez se estivéssemos no teu lugar fizéssemos o mesmo. A tua “mentira” foi para proteger o teu Filho. E essa foi a maior prova de amor por ele que tu alguma vez deste. Aquela e esta, agora. Não te importaste com aquilo que eu pudesse pensar de ti. Não te importaram os meus julgamentos ou as minhas reacções. Como uma boa Mãe que foste desde o momento que descobriste que estavas grávida, o teu primeiro instinto foi proteger o teu Filho. E perante isso, não há julgamento algum que possa ser feito.

Rendida perante os argumentos do Pai, Carla deixou pender os braços ao longo do corpo, deixando-se cair, em seguida, num poltrona que estava mesmo ao seu lado.

- E agora, Papá? O que é que eu faço com o Ricardo? E se ele descobre que o Tomás é filho do melhor amigo dele? E se o Miguel descobre toda a verdade? Eu não quero perder o meu Filho. Não quero.

- Vamos lá ter calma. O primeiro passo é eu reassumir o meu cargo. Já chega de ter pena de mim mesmo. Tenho uma Filha e um Neto que amo muito e que precisam de mim. Volto à empresa na segunda. Quanto ao resto não podemos precipitar-nos. Vamos ver como as coisas acontecem e depois logo decidimos o que fazer. Entretanto quero conhecer esse Ricardo...

Nisto, Tomás irrompeu pela sala, e saltou de imediato para o colo do Avô.

- Vôzinho, estava cheio de saudades suas! – disse o Menino num tom meigo e sincero.

Ao ver o embrulho que o Avô lhe estendia, os olhos de Tomás brilharam. Num ápice rasgou o embrulho, e o seu rosto encheu-se de alegria quando viu o que lá estava dentro.

- A camisola nova do Benfica!!! Obrigada Vôzinho, vou já vestir. – disse, saltando de seguida para o chão. No corredor ouviu-se a sua voz chamar por Elisa, mas logo se calou.

Até nisso era igual ao Pai, na paixão pelo futebol e pelo Benfica – o clube do coração de ambos.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

29

O dia tinha sido passado mergulhado em pensamentos contraditórios que se sucediam uns aos outros a uma velocidade vertiginosa, entrecortados por tentativas tão erráticas como infrutíferas de afastá-los e de se concentrar noutra coisa. Queria estudar e não conseguia; queria sair e não tinha vontade. Assim tinha sido também o dia anterior, desde a conversa com Mário, logo de manhã na esplanada do café. Depois da ida inútil à faculdade, viera para casa e aí se deixara estar. À noite, custara-lhe adormecer; ficara horas a virar-se para um lado e para o outro na cama.

No dia seguinte ao acordar, a cabeça doía-lhe como se fosse explodir, mas, no meio de toda a torrente de ideias que lhe fluíam pela mente, uma se impôs às outras: a sua gravidez.

Não tinha contado a Mário que ia ser pai. Quando soubera da gravidez, ao fazer um daqueles testes da farmácia por estranhar o atraso no período, logo ela que sempre fora tão regular, reagira de forma que agora lhe parecia inesperada e contra toda a lógica, mas que na altura lhe parecera a mais acertada: a primeira pessoa com quem falara fora Ricardo, para que este fizesse Miguel afastar-se de si. Olhando para trás, não sabia por que o fizera; com o tempo acabara por acreditar que fora com o objectivo de magoá-lo e fazê-lo sofrer o mais possível, ou talvez apenas para lhe fazer ciúmes, mas na altura fizera-o porque se sentia bem com Mário e queria que Miguel deixasse de procurá-la e lhe desse paz e espaço para viver o seu novo amor. Porém, logo se arrependera, e, talvez por isso, adiara a conversa que iria ter com Mário. Ao ver Miguel no hospital, reforçara o sentimento de que este ainda significava muito para si, e, talvez porque se sentira a perdê-lo (ou talvez o tivesse já perdido definitivamente), quisera instintivamente reconquistá-lo. Na esplanada, sentira-se a mais infeliz do mundo, abandonada por Mário e por Miguel, completamente só.

Sobrava-lhe o seu filho, uma dolorosa recordação destes últimos meses, um fardo que não se sentia preparada para carregar sozinha. Quando tinha Mário do seu lado, sentia-se capaz de tudo, mas assim não. Além do mais, ele não sabia e Margarida não sabia como ele iria reagir se lhe contasse agora que tudo tinha acabado. Agora que pensava nisso à distância duma semana e alguns dias, perguntava-se se o motivo que a levara a adiar não fora, já aí, medo da reacção de Mário.

Fosse como fosse, era melhor assim, era preferível que ele não tivesse sabido nem nunca viesse a saber; sobretudo depois da sua decisão.

Margarida não consultara os pais nem nenhuma outra pessoa. Esta era uma decisão sua, que só a si competia, e que não queria partilhar com ninguém. Não queria dividir o fardo com ninguém, nem queria que ninguém soubesse a verdade.

De repente, deu consigo a reflectir o quão irónica a vida podia ser: fazia naquele dia precisamente três meses que votara no Referendo. Três meses antes, dissera não ao que agora dizia sim, apenas porque a realidade lhe batera à porta a si. Sentiu-se hipócrita e egoísta, mas consolou-se dizendo que nunca é tarde para mudar de opinião e descobrir um novo caminho. Ainda mais irónico era o facto de a sua decisão hoje ser possível graças a todas as pessoas que há três meses discordaram de si. Sentiu-se agradecida por outros terem visto o que fora incapaz de ver.

Era Sexta-feira e já era tarde para telefonar ao seu médico; fá-lo-ia depois do fim-de-semana.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

28

Fechou os olhos e recostou-se no sofá do escritório. Precisava daquele momento de pausa antes do jantar. Ricardo deveria estar quase a chegar e Tomás estava numa agitação fora do comum.

Sentia-se física e psicologicamente cansada. Não sabia o que esperar daquele jantar. Falara com Ricardo duas ou três vezes durante a semana e notara-o diferente. Aquele momento, naquela noite em que o susto da febre de Tomás tinha tomado conta dos dois, havia sido intenso demais. Repentino demais. E sabia, por experiência própria, que nada que fosse repentino daria bom resultado. Existiam obstáculos demais entre os dois. Mas a verdade era que naquela noite, enquanto Ricardo a abraçava, havia desejado, mais do que devia, que aquele beijo tivesse acontecido de verdade. Fechou os olhos com mais força, numa tentativa vã de apagar aqueles pensamentos da sua mente. Ricardo era impossível. E quando ele soubesse da verdade, iria afastar-se de imediato. Afinal, Miguel era, ainda, o seu melhor amigo. E contra isso não poderia lutar.

Recordou-se da conversa com Eduardo e Leonor. E percebeu, que antes que fosse tarde demais, teria de revelar toda a verdade ao Pai. Ele saberia, com toda a certeza, ajudá-la da melhor maneira possível.

Um leve bater na porta do escritório fez Carla regressar à realidade. Era Elisa a anunciar a chegada de Ricardo. De tão embrenhada nos seus próprios pensamentos que se encontrava, nem escutou a campainha tocar.

- Obrigada, Elisa. Diga ao Dr. Ricardo que em cinco minutos estarei na sala. O Tomás já está mais calmo? – perguntou, por fim, a Elisa.

- Já sim, Menina. Mas foi difícil. – respondeu-lhe Elisa, saindo de seguida.

Depois de respirar fundo, Carla saiu do escritório ao encontro de Ricardo. Quando chegou à porta da sala não foi capaz de entrar. A cena que presenciou fê-la sentir um aperto imenso no peito. Tomás estava sentado ao colo de Ricardo, e os dois pareciam entender-se muito bem. Ricardo falava e Tomás parecia gravar cada palavra na sua mente, como se não quisesse deixar escapar uma que fosse. De repente, ambos perceberam a sua presença. Enquanto Tomás saltava do colo de Ricardo para abraçar a Mãe, este levantava-se do sofá e presenteava Carla com um sorriso discreto, mas meigo. Por momentos, Carla sentiu-se, mais uma vez em perigo. A cena que acabara de presenciar tinha tido em si o efeito de uma descarga eléctrica. Aquele homem estava a tornar-se importante na sua vida, sem que ela conseguisse entender o porquê , e até Tomás parecia gostar muito dele. Na verdade pareciam gostar bastante um do outro. Mas isso poderia ser só impressão sua.

Durante o jantar, Ricardo puxara o assunto do Colégio. Carla, a contra-gosto, acabara por revelar-lhe em que Colégio tinha andado, e confirmava-se que ambos haviam frequentado o mesmo Colégio.

- Então a Carla deve conhecer o Miguel Lopes Menezes? Ele era do seu ano. – perguntou-lhe Ricardo.

- Sim, conheço. Ele era da mesma turma que eu. – respondeu-lhe Carla incomodada.

Ricardo, que percebera o incómodo de Carla, ainda referiu o nome de Miguel mais algumas vezes durante o jantar, numa atitude que, claramente, havia aumentado o desconforto da sua interlocutora. As suas suspeitas começavam a ganhar contornos mais definidos. De repente, como se uma luz se acendesse na sua mente, Ricardo recordou-se da “Freira”, e então tudo fez um novo sentido. Carla havia abandonado o Colégio por altura das férias da Páscoa, pouco mais de um mês depois daquela malfadada festa de Carnaval. Não podia ser. Mas parecia tudo tão evidente, naquele momento, na sua mente.

Os pensamentos de Ricardo haviam sido interrompidos por Tomás.

- És amigo da Mamã, ou és namorado dela? – perguntara Tomás, com a ingenuidade característica das crianças inocentes.

- Tomás! Isso é pergunta que se faça? – repreendeu-o Carla, atrapalhada com a pergunta do Filho. – Não lhe ligue, Ricardo. Ele não sabe o que diz.

- Sei, sei. – respondeu Tomás – Se o Tio Ricardo for teu namorado vai ser meu Papá. E eu gostava. Porque os outros meninos têm e eu não.

Carla notara a tristeza que, naquele momento, ensombrara os olhos do Filho e sentiu o coração ficar pequenino dentro do peito. Ricardo também percebera, e por isso respondeu-lhe prontamente.

- Por enquanto sou só amigo da tua Mamã, mas nunca se sabe se não serei namorado, um dia.

Carla olhara Ricardo com um misto de surpresa e desagrado. Não era correcto que ele dissesse aquelas coisas a Tomás.

- Vá Tomás, está na hora de ir dormir. – disse-lhe Carla, num tom mais forte do que o normal.

Perante a forma como a Mãe falara, Tomás nem sequer havia pensado em pedir para ficar mais um pouco. Despediu-se da Mãe e de Ricardo com o habitual beijinho de boa noite, e deixou-se levar para o quarto por Elisa.

Depois de ficarem sozinhos, Carla quebrou o silêncio.

- Não devia ter-lhe dito aquilo. Ele agora vai ficar cheio de ilusões a seu respeito, Ricardo. E isso não é justo...

- Por que não? Todas as crianças merecem ter um Pai. Por que não eu? Não sei o que se passa comigo, connosco... Mas a verdade é que ambos sabemos que mais tarde ou mais cedo não seremos capazes de controlar isto que há entre nós. Carla, olhe para mim.

- Não, Ricardo, não pode ser... – e sem mais explicações virou-lhe as costas e dirigiu-se à varanda.

Ricardo seguiu-a.

- Amanhã falamos, Carla. Mas este assunto não terminou aqui. E ambos sabemos perfeitamente disso. – e dizendo isto, deu-lhe um beijo na testa e saiu.

Enquanto Carla se havia dirigido ao quarto do Filho para lhe dar mais um beijo de boa noite, Ricardo, já sentado ao volante do carro pensava para consigo mesmo – “Eles conhecem-se mesmo. Tenho de saber a verdade...”

A alguns quilómetros dali, Margarida acabava de tomar uma decisão. Talvez a mais importante que até então havia tomado, em toda a sua vida.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

27

Margarida, entretanto, continuava sentada na esplanada do café, sozinha e atordoada com o que acabara de ouvir. As palavras de Mário ainda reverberavam como um estranho eco nos seus ouvidos, como se ele tivesse falado numa língua que ela não conseguisse compreender.

– Margarida, precisamos de conversar – dissera-lhe ele, ignorando toda a história que ela lhe contara detalhadamente, acto que a colocara logo de sobreaviso, pois não era hábito de Mário cortar assim uma conversa para mudar tão bruscamente de assunto, e muito menos com aquele ar solene com que anunciara que precisavam de conversar. Margarida pressentira-o, não sabia bem como nem porquê, mas pressentira que algo de muito ruim estava para acontecer e não se enganara. A medo, ignorando em absoluto, mas como como que já sabendo de antemão o que iria passar-se, retorquira um simples “sim, diz” com total indiferença, como se nada do que Mário tivesse para lhe dizer pudesse afectá-la minimamente.

– Não podemos continuar juntos – atirara ele de chofre, à queima-roupa, sem quaisquer contemplações e sem sequer pestanejar. No seu olhar, Margarida recordava agora uma frieza que não só não lhe conhecia, como nem sequer sabia explicar, como se a separação fosse algo há muito premeditado e minuciosamente planeado, como se não lhe custasse minimamente expulsá-la assim da sua vida.

Margarida não lhe perguntara porquê. Aliás, não dissera nada, nem se lembrava das razões que ele lhe dera, se é que lhe dera alguma. Devia ter dado; afinal, não se acabava uma relação que, ainda que curta, tinha gerado – ou estava a gerar, dependendo do ponto de vista – um filho sem dar uma explicação, um motivo qualquer, alguma coisa que acontecera, que Margarida dissera ou fizera que não lhe agradara, ou que simplesmente deixara de gostar dela, mesmo isso sem outras elaborações seria aceitável. Devia ter dado todos os motivos e mais alguns, provavelmente muito plausíveis e perfeitamente compreensíveis, mas Margarida não conseguia lembrar-se dum só. Naquele momento, os sentimentos dentro de si andavam à deriva.

Diz-se que só se dá valor ao que se tem depois que se o perde; estaria porventura isso a passar-se com Margarida? Há pouco mais de vinte e quatro horas, estivera em casa de Ricardo chorando a perda de Miguel, mas agora só conseguia pensar em todos os bons momentos que passara ao lado de Mário nos três meses e alguns dias em que estiveram juntos e no filho que ele lhe dera. Sentia-se dividida e, o que é pior, sentia-se desorientada, como numa encruzilhada sem saber que caminho seguir.

Deixou-se estar mais um pouco na esplanada. Veio-lhe à memória a tal lei da acção-reacção que lera na revista e não pôde deixar de se sentir mais triste ao pensar que as suas acções ultimamente foram premiadas com reacções contrárias às que desejaria. Fechou os olhos por um momento, mas o ruído duma ambulância a aproximar-se fê-la reabri-los rapidamente e lembrar-se de Miguel; quem sabe não teria sido naquela mesma ambulância que ele fora levado ao hospital? Afastou o pensamento: “Do que tu te foste lembrar, rapariga! Sempre tens cada ideia mais peregrina!” Miguel, Mário, Mário, Miguel... Reparou então na coincidência da primeira letra dos três nomes: Miguel, Mário e Margarida. “Mas que raio de ideias que estás a ter! Levanta-te e vai mas é para a faculdade, que daqui a pouco tens aulas.”

Assim fez; apanhou o autocarro e saiu na paragem em frente à faculdade. Pelo caminho, enjoou; sempre lhe acontecia isso quando viajava sentada de costas. “Quando é que aprendes a não te sentares nestes bancos?”, recriminou-se, sabendo todavia da inutilidade de tal acto de contrição, porquanto voltaria a fazer o mesmo na próxima oportunidade, tal era a preguiça de viajar de pé. Bom era o metro; aí nunca enjoava. Ou então ir de carro; não tinha carta, mas sempre andava à boleia. Gostava do carro de Miguel; dizia-lha muitas vezes, meio a brincar, meio a sério, que, quando tirasse a carta, compraria um carro igual ao dele, ou mesmo o seu em segunda mão, se ele resolve trocar por um novo. O carro de Mário não lhe agradava tanto, pois fazia-a sentir-se um pouco esmagada lá dentro. Era um carro pesado. Mário falava dele com satisfação, quase orgulho, cavalos para aqui, cilindrada para ali, dos zero aos cem em não sei quantos segundos, binário isto e aquilo; Margarida não percebia nada, mas gostava de ouvi-lo.

Entrou na faculdade com a cabeça inundada por Mário e Miguel, que competiam entre si pela maior fatia do seu pensamento, nem se apercebendo de não circulava ninguém pelos corredores. Só quando chegou à porta do anfiteatro e a encontrou fechada é que se lembrou que era a semana da Queima das Fitas e que não havia aulas. “Para o que havia de dar-me: vir para a faculdade sem ter aulas... Estou mesmo desnorteada”, pensou.

Mas logo o mesmo pensamento tomou a sua mente de assalto. Aquilo que lhe parecera tão certo já não o era de novo. Depois de falar com Ricardo, Miguel era o homem da sua vida e Mário uma brincadeira destinada a fazer-lhe ciúmes. No entanto, agora que Mário lhe dissera, sem contemplações, que não podiam continuar juntos, sentia a sua falta, a segurança que lhe dava aninhar-se nos seus braços, a experiência dum homem mais maduro, deixar-se guiar por ele.

Saiu da faculdade pela porta por onde entrara e parou para pensar, ou talvez para tentar esvaziar a mente de pensamentos, já não sabia bem. Quando pensava que tinha conseguido e ia ter um momento de paz, uma outra dúvida assolou-a:

– E o meu filho? – murmurou.