quinta-feira, 28 de junho de 2007

12

Ainda não conseguia acreditar no que havia acontecido. “Não consigo acreditar que aquele artolas me deixou pendurada, não consigo mesmo”, pensava Carla insistentemente. Mas tinha de libertar a mente daqueles pensamentos. Eduardo telefonara-lhe logo cedo para avisar que chegaria com Leonor por volta da hora do almoço. E era nisso que tinha de concentrar-se. De repente, um outro pensamento tomou de assalto a sua mente – a pergunta que Tomás lhe havia feito na noite anterior – “Mamã, porque é que os outros meninos têm um Papá e eu não?”. Tremia só de pensar que um dia teria de revelar ao filho a identidade do Pai.

Por volta das 13hs, Eduardo chegou com Leonor a casa de Carla. Quando abraçou o Primo, Carla sentiu-se mais protegida. Tinha urgência em contar-lhe o que havia acontecido na última semana – o acidente de carro, as perguntas de Tomás, a tampa de Ricardo e o reencontro com Miguel. Sabia, exactamente, o que é que Eduardo lhe diria em seguida, mas sentia que ainda não era altura de revelar toda a verdade. Sentia que, no momento em que o fizesse, a sua vida iria mudar para sempre. A sua e a de Tomás. E ainda não podia fazê-lo.

A conversa correu sem muitos problemas. Eduardo e Carla explicaram a Leonor tudo o que havia acontecido há sete anos atrás. No início foi complicado para Leonor compreender os porquês que haviam levado Carla e Eduardo a manter aquela mentira durante tantos anos. Mas depois percebeu que a dita “mentira” não havia passado do papel. Tomás não sabia que Eduardo o havia registado em seu nome e que para o menino aquele era apenas o seu Tio Dado. No final da conversa acordaram, os três, que a situação se manteria até que Carla considerasse que havia chegado o momento certo para revelar a verdade. No entanto, Carla havia ficado com a certeza de que a verdade viria à tona mais cedo do que esperava.

Enquanto Carla conversava com Eduardo e Leonor, Ricardo recebia notícias de Miguel. Afinal não tinha acontecido nada de mais ao amigo. Mas a verdade é que Ricardo não ganhara para o susto. Para além de ter deixado Carla pendurada.

No dia anterior, Ricardo preparava-se para sair da empresa quando o seu telemóvel tocou. Do outro lado, uma funcionária do Hospital de São João perguntava-lhe se conhecia o Sr. Miguel Lopes Menezes.

- Sim, conheço. Sou o melhor amigo dele. Mas passa-se alguma coisa? – questionara Ricardo, num tom preocupado.

- O Sr. Miguel Menezes sofreu um acidente. Parece que adormeceu ao volante, por volta das 18hs. – respondera-lhe a funcionária, meio atrapalhada com a situação caricata que se encontrava a relatar.

- Mas ele magoou-se muito?

- Sim, bastante. Tem algumas fracturas. E vai ter de ficar internado, pelo menos, uns dias. Só precisava que nos trouxesse os documentos do Sr. Miguel Lopes Menezes, porque as únicas coisas que encontramos foram um cartão de visita seu e o cartão da empresa onde o Sr. Miguel trabalha. E precisamos dos documentos dele.

- Com certeza. Vou ver o que consigo fazer e depois passo aí.

Depois de desligar aquela chamada, Ricardo pegara novamente no telefone e ligara para a empresa de Miguel para saber se ele, por mero acaso, não teria deixado a carteira esquecida por lá. Confirmado o esquecimento, e passados 20 minutos, Ricardo entrava no gabinete de Miguel para ir buscar a carteira. “Aquele cabeça no ar!”, pensara Ricardo. De seguida dirigira-se para o Hospital, e acabara por esquecer-se, completamente, do jantar com Carla. Quando se lembrou é que se deu conta de que o único contacto dela que tinha era o telefone da empresa. Nunca antes se havia esquecido de pedir o número de telemóvel a uma mulher bonita, e da primeira vez que se havia esquecido tinha de acontecer-lhe aquilo. Bolas! Quase podia apostar que ela não iria acreditar nos seus motivos. Mas segunda-feira logo falaria com ela e tentaria explicar-lhe a situação. Acabara por sair tardíssimo do Hospital. Não avisara os Pais de Miguel, de imediato, para não os preocupar. Mas uma coisa era certa, o amigo teria de explicar-lhe como é que havia adormecido ao volante às 18hs da tarde!!!

As informações que a enfermeira tinha acabado de lhe dar eram boas. Miguel estava a reagir bem ao tratamento, apenas se queixava de imensas dores. Depois de receber as boas novas, e de informar oas Pais de Miguel do ocorrido, Ricardo deu consigo a pensar em Carla outra vez. Só tinha visto aquela mulher uma vez, e parecia que havia ficado fascinado. Desde que Beatriz havia terminado com ele, Ricardo tornara-se um verdadeiro Don Juan, fazendo jus à fama que adquirira na Faculdade, antes de conhecer a ex-namorada. Desde então que quase nenhuma mulher bonita conseguia resistir-lhe. Mas sentia que Carla era diferente. Talvez fosse pelo mistério que a envolvia, talvez fosse pelo facto de ela não se ter rendido à primeira troca de olhares, ou, então, talvez fosse apenas pelo facto de nunca ter encontrado uma mulher que lhe parecesse tão forte e tão frágil ao mesmo tempo. Fosse qual fosse o motivo, a verdade é que sentia uma necessidade imensa de se justificar e de que ela acreditasse em si. Segunda feira logo veria como correria a conversa que imperava ter. Mas naquele momento tinha outra preocupação – descobrir o que havia acontecido com Miguel e as verdadeiras razões daquele acidente.

terça-feira, 26 de junho de 2007

11

Em menos de nada chegou ao restaurante onde combinara com Ricardo, quinze minutos atrasada, como manda a etiqueta, que não é bonito a convidada ter de esperar pelo anfitrião. Mesmo assim prevenida, Carla não viu Ricardo no restaurante quando entrou. A gerente, que ainda se lembrava da filha do doutor Fernando Noronha Lima, dirigiu-se-lhe imediatamente, perguntando se queria mesa para jantar ou iria aguardar, ao que Carla respondeu pela segunda hipótese.

- Sim, senhora; prefere aguardar aqui no bar ou ali nos sofás?

Carla escolheu os sofás pretos do lado esquerdo, pois o bar mesmo à entrada pareceu-lhe um pouco desprotegido: a porta em frente, o balcão atrás e mesas de jantar de cada lado; não havia ponto que lhe resguardasse as costas. O ser humano tende a sentir-se desconfortável em espaços abertos onde possa ser observado por trás, e Carla não era excepção. Sentou-se de costas para um biombo e admirou a estante: livros antigos, de lombadas com letras douradas, a maioria deles em francês. "Curioso," pensou, "alguém lerá estes livros?". Ao centro, jornais sobre uma mesa e, a completar, uma meia-luz intimista, paredes verdes, uma sala sossegada e confortável.

"O Ricardo afinal não é tão perfeito como parecia ao telefone; está atrasado... Bem, enquanto espero, vou lendo qualquer coisa, sempre não perco o meu tempo inutilmente." Pegou num jornal, abriu-o e encostou-se para trás no sofá.

Eram nove e meia quando Carla olhou para o relógio, pousou o jornal e se levantou: "Não veio, não disse nada, também não vou telefonar-lhe, era o que me faltava! Vou mas é embora!" Depois pensou no que iriam pensar a gerente e o resto dos empregados do restaurante. Não podia esquecer-se de que o seu pai era cliente habitual do restaurante e não ficava bem ser deixada plantada. "E daí, o Papá é que vai salvar-me..." Pegou no telemóvel, carregou na tecla um (era a tecla de marcação rápida atribuída ao pai) e no botão de chamar, mas não chegou a deixar tocar. Desligou, engoliu o orgulho e procurou o cartão com o número de Ricardo na carteira, mas não o encontrou, e então lembrou-se de que o tinha pousado em cima da mesa do escritório, na empresa. Ainda ponderou ir buscá-lo, afinal era curta a distância, mas depois reflectiu melhor e chegou à conclusão de que um homem que a deixava plantada num restaurante não merecia tanto trabalho. Voltou então a ligar para o pai e convidou-o para jantar consigo.

Pouco depois, o doutor Fernando Noronha Lima entrava no "Cafeína" e cumprimentava a filha com um beijinho na testa enquanto pedia à gerente uma mesa para dois. Depois de se sentarem, perguntou à filha:

- Desculpa ser tão directo, mas não era hoje que tinhas um jantar aqui com o tal senhor que te bateu no carro?

- Era, Papá, mas parece que ele achou divertido deixar-me pendurada.

- A sério, filha? Não te ligou nem nada?

- Nada. Mas eu também não lhe digo mais nada, e hei-de tratar para que a seguradora lhe suba o prémio tanto quanto possível por conta da pancada que me deu na Segunda passada!

- Quanto ao prémio, acho que não terás grande influência nas decisões da seguradora, e quanto a não telefonares, não estarás a fazer um juízo precipitado?

- Precipitada, eu? Como assim?

- Minha filha, por que não lhe dás o benefício da dúvida? Não sabes o que de facto se passou; pode haver uma boa razão por detrás desta aparente desconsideração dele.

- Papá, mas afinal tu ainda o defendes?

- Minha querida, eu não defendo ninguém. Só não quero que te precipites. Afinal, o moço foi gentil, convidou-te para jantar com ele, não vejo por que faria isso para depois te deixar aqui à espera e não aparecer... Liga-lhe e vais ver que tudo tem um motivo...

- Não, isso está fora de questão. Eu também tenho o meu amor-próprio. Ele falhou para comigo, mesmo que tenha tido um bom motivo para tal, deve ser ele a telefonar-me e a desculpar-se.

- Faz como entenderes, mas já sabes a minha opinião. Dá-lhe, pelo menos, o benefício da dúvida.

- Sim, Papá, fá-lo-ei. Se ele me telefonar, eu ouvi-lo-ei, mas não contes comigo para dar o braço a torcer.

- Melhor do que nada! - suspirou o pai de Carla. - E agora comamos. O que vais pedir?

Carla pediu um robalo com cogumelos e o pai um tornedó. O ambiente foi desanuviando aos poucos e, embora o início do jantar tenha sido apenas interrompido pelo som dos talheres a rasparem no prato e algumas tentativas por parte do pai para encetar uma conversa, no final já se abriu um pequeno sorriso nos lábios de Carla quando aquele lhe disse brincando que ficara satisfeito de saber que ainda era capaz de cativar uma dama para jantar consigo, embora preferisse ter sido a primeira opção.

Já passava das onze quando Carla e o pai saíram do restaurante. Passava também das onze quando, na Unidade de Cuidados Intermédios, Ricardo se lembrou subitamente de Carla e do jantar.

"Grande bronca!", pensou com os seus botões. "A esta hora ela deve estar piursa... Ligo-lhe? Bem, só me faltava esta."

Decidiu telefonar-lhe. Pegou no telemóvel e ouviu um tossicar. Olhou para o local donde o som proviera e viu uma enfermeira vestida de branco um pouco atrás de si a apontar para um papel colado à parede, onde se lia "desligue o seu telemóvel" por entre as manchas da impressão em jacto de tinta que desbotara, provavelmente por causa dum frasco de soro fisiológico aí derramado acidentalmente (deve ser o líquido mais frequente numa qualquer unidade hospitalar, quiçá até mais do que a água), e por baixo duma circunferência vermelha com uma linha diagonal no seu interior cortando o desenho do dito aparelho. Ricardo percebeu a mensagem, levantou-se e saiu da Unidade.

Já cá fora, pegou de novo no telemóvel e marcou o número de Carla. Ninguém atendeu. Repentinamente, deu-se conta de que estava a ligar para o escritório da empresa: "Claro! A esta hora havia de lá estar alguém? E ainda por cima é Sexta-feira; agora só na próxima Segunda. Ela vai querer bater-me quando lhe telefonar... Devia ter-lhe pedido o número de telemóvel; como foi que não me lembrei disso?"

Na verdade, Ricardo não tinha pedido nenhum contacto a Carla, nem esta lho oferecera; toda a comunicação entre ambos se fizera sempre através do telefone da empresa, que era o único contacto constante do cartão que Carla lhe dera na altura do acidente. Só agora Ricardo se estava a dar conta de que fora um erro não ter obtido um meio mais expedito de contactar Carla. Mas também, quem poderia imaginar que iria encontrar-se naquela situação?

quinta-feira, 21 de junho de 2007

10

A semana passou a voar, e Carla só de deu conta disso por volta da hora de almoço, daquela bela sexta-feira de Primavera, quando o telefone tocou e do outro lado a secretária perguntou se podia passar uma chamada do Dr. Ricardo Oliveira Cardoso. Como se tivesse sido obrigada a descer à realidade, Carla assentiu em receber a chamada.

- Olá Carla! Como está?

- Bem, obrigada. E o Ricardo?

- Também! Sabe, estou a ligar-lhe para confirmar o jantar de logo à noite e para perguntar se quer que a vá buscar a algum lugar. – disse Ricardo com um à vontade de que Carla não estava à espera.

- Sim, o jantar confirma-se. Mas não será necessário ir buscar-me onde quer que seja. Encontramo-nos lá. – rematou Carla.

- Como queira! Não posso dizer que não tentei.

- Estamos combinados, então, às 21h30 no “Cafeína”. Até logo, Ricardo. – tentou Carla despachar a conversa.

- Combinado, então. Um beijinho e até logo! – “esta é dura na queda”, pensou Ricardo, desligando em seguida.

Depois de desligar o telefone, Carla, que se preparava para ir almoçar, pensou no almoço que havia tido com o Pai, dias antes, naquele mesmo lugar. Pensou ainda no bilhete de Miguel que havia deitado ao lixo. E, pela primeira vez, e depois do telefonema de Eduardo, questionou-se se havia feito, realmente, bem em agir daquela forma.

Receber aquela chamada de Eduardo, na noite anterior, fê-la repensar algumas questões.

Na altura em que Tomás nasceu aquela havia sido a solução mais simples, e mais prática. Afinal eram primos em 4º grau, e a situação não traria problemas de maior. Tomás precisava de ter nome de Pai, e Eduardo, que sempre havia sido o melhor amigo de Carla, fizera questão de registar o Primo com o seu nome.

Três anos mais velho do que Carla, Eduardo era, na altura do nascimento de Tomás, um dos melhores alunos do terceiro ano de Direito da Faculdade de Direito de Lisboa. Já naquela altura brilhava no Direito Fiscal. E poucos anos mais tarde esse seu talento viria a confirmar-se ao integrar uma das Sociedades de Advogados mais importantes nessa área do Direito, em Lisboa.

Eduardo sempre adorara Tomás, e sempre fizera questão de ser seu “Pai”, mas Carla nunca o permitira. Havia aceite que o primo desse o seu nome ao filho, mas sempre deixara bem claro que não queria que Eduardo condicionasse a sua vida por causa de um papel que não era seu. A amizade sincera e pura entre os dois permitiu que o Primo percebesse e respeitasse a decisão de Carla. E assim Eduardo tornou-se no Tio Dado.

Mas agora a situação tinha-se alterado. Eduardo ia casar-se e queria contar a verdade à noiva. E não era fácil para ele explicar-lhe que tinha um filho, mesmo não sendo o Pai biológico.

- Vou ao Porto no fim-de-semana, e levo a Leonor. Temos de ser os dois a conversar com ela e a explicar-lhe a situação. E começo a acreditar que talvez esteja na hora de o Tomás conhecer o Pai. Não achas? – dissera-lhe Eduardo no seu tom de voz determinado e peremptório.

Carla concordara em conversar com Leonor, juntamente com Eduardo. Percebia perfeitamente o Primo, e ajudá-lo-ia no que fosse necessário. Afinal havia sido com ele, e só com ele, que ela partilhara o seu segredo, a sua história e a verdadeira identidade do Pai de Tomás. Agora era a sua vez de ajudar Eduardo.

Mas quanto ao facto de revelar, de uma vez por todas, que era o Pai de Tomás, isso ainda teria de pensar muito bem. Não podia expor o filho daquela forma. Fizera tudo para o proteger, e não seria agora que iria colocar o seu bem-estar em risco. Alguma solução encontraria.

Saiu para almoçar e tentou não pensar mais no assunto. Eduardo chegaria no dia seguinte, mas antes, nessa noite, ainda teria o tal jantar com um Don Juan de seu nome Ricardo. “Aquela cara é-me familiar... Mas de onde???”, questionara-se, novamente, Carla.

A tarde passou sem que se desse conta, e num instante chegou a noite. Estava quase pronta para sair de casa quando Tomás entrou no seu quarto e lhe fez a pergunta mais inesperada:

- Mamã, porque é que os outros meninos têm um Papá e eu não?

Carla gelou, e sem saber muito bem o que responder ao filho, disse-lhe que eram quase horas de ir para a cama, mas que como era sexta-feira iria permitir que Elisa o deitasse um pouco mais tarde.

- Sem reclamações, quero-te na cama às 22h30. Combinado?

- Combinado, Mamã!!! – respondeu Tomás que feliz saiu do quarto da Mãe a saltitar e a chamar por Elisa para lhe dar a boa nova.

Antes de sair de casa, Carla dera a Elisa as instruções necessárias e dissera-lhe a hora a que deveria deitar Tomás. A empregada assentiu.

Depois de dar um grande beijo ao filho, Carla saiu de casa e entrou no carro. Colocou a chave na ignição e rodou-a de modo a que o motor começasse a trabalhar.

“O que é que eu faço agora?”, questionou-se a si mesma. E sem aguardar “resposta” meteu a primeira e arrancou...

terça-feira, 19 de junho de 2007

9

Parecia que aquele dia interminável não teria fim. O acidente de manhã, a reunião do Conselho de Administração e a reunião de Pais no Colégio de Tomás tinham-na deixado exausta. As únicas coisas boas daquela longa segunda-feira haviam sido os miminhos de Tomás logo de manhã, antes de ficar no colégio, e o almoço com o Pai.

Fechou os olhos e recordou o restaurante onde tinha ido almoçar. Era obrigada a admitir que o tal Ricardo tinha bom gosto. O “Cafeína” era, de facto, um restaurante elegante e requintado, com um ambiente sóbrio e um atendimento impecável. Além de ter muita lábia, o tipo era refinado. Algo lhe dizia que deveria ter cuidado com ele.

Eram quase horas de ir buscar Tomás ao colégio quando o seu telemóvel tocou.

- Minha querida filha, e se eu fosse buscar o meu neto ao colégio e o levasse a jantar. Assim num jantar só de homens? Depois do nosso almoço fiquei com a nítida sensação de que estás muito cansada. Aproveita estas horinhas para fazeres alguma coisa por ti. Que me dizes? – perguntou-lhe o Pai assim que atendeu o telemóvel.

- Excelente ideia, Papá! Fico-te muito grata! O Tomás vai adorar ir jantar contigo. E eu vou aproveitar para tomar um banho revitalizante. O dia de hoje parecia não ter fim.

- Às 21hs deixo-o em casa. Pode ser?

- Com certeza. Ele costuma deitar-se às 21h30, por isso era hora é perfeita. Até logo Papá, e obrigada! – despediu-se Carla do Pai.

Iam saber-lhe bem aqueles momentos só para si.

Entretanto, e enquanto Carla se preparava para sair da empresa em direcção a casa, Miguel, inquieto, interrogava-se relativamente ao assunto sobre o qual Ricardo queria falar-lhe.

Ricardo telefonara-lhe ao início da tarde, dizendo que tinha a máxima urgência em falar consigo, mas aquele cliente chato tinha-o impedido de atender o chamado do amigo. Acabaram por combinar jantar. Mas a verdade é que Miguel se sentira curioso e incomodado o resto da tarde. Haviam sido raras as vezes em que Ricardo lhe dissera ter muita urgência em conversar com ele. Estranhara aquela urgência repentina e sem motivo aparente do amigo. E estranhara ainda mais o pedido expresso de Ricardo para conversarem em sua casa. Ainda tinha de despachar algumas coisas no cliente, mas iria conseguir estar às 20h30 em casa de Ricardo. Qualquer coisa lhe dizia que daquela conversa não viria boa coisa. Mas não valia a pena especular. Já faltava pouco para saber.

Concentrou-se de tal forma que quando deu por si eram já 19hs. Ainda precisava de ir a casa tomar um duche e trocar de roupa. Voou até casa e às 20hs estava pronto para sair. E assim o fez. Sem nunca imaginar, sequer, o teor da conversa que o aguardava daí a poucos minutos.

Ao chegar a casa de Ricardo percebeu no amigo uma agitação fora do normal.

- O que é que se passa, meu? Fiquei preocupado contigo a tarde inteira, por causa desta tua urgência! – disse Miguel assim que chegou a casa de Ricardo.

- Senta-te. Preciso de te contar uma coisa e é melhor que estejas sentado. Tem a ver com a Margarida...

- Com a Margarida? Mas que raios tens tu para me contar da Margarida? Ai, já não estou a gostar da brincadeira.

- Deixa-me falar. Não me interrompas e já vais perceber. A Margarida apareceu-me aqui em casa hoje, à hora do almoço. Tinha eu vindo tomar um duche e trocar de fato para a reunião com os Franceses quando me tocam à campainha. Qual não foi o meu espanto quando vi que era a Margarida. Apesar de estranhar, abri-lhe a porta e começámos a conversar. Ela veio cá para me pedir que te dissesse que a deixasses viver a vida dela. Conheceu um homem há três meses e está grávida de um mês e meio. E quer que a deixes em paz de vez. Pronto, já disse. Agora podes falar. – disse Ricardo, de uma só vez, como se tivesse receio que, entretanto, a coragem lhe falhasse.

- Estás a gozar comigo, não estás? Isto só pode ser uma piada de mau gosto. A Margarida? Grávida? De outro gajo? Só podes mesmo estar a gozar-me...

- Acredita que preferia mil vezes estar a pregar-te uma partida daquelas nossas do que estar a contar-te esta verdade cruel. Mas a Margarida achou preferível que soubesses por mim.

- Por ti? Mas vocês nunca gostaram um do outro. Não acredito.

- Tens razão quando dizes que nunca gostamos um do outro. Mas sempre gostamos muito de ti. Só que a vossa relação terminou, por culpa tua, e agora ela refez a vida dela. Ninguém a pode condenar. Sinto muito ser eu o mensageiro de tão dolorosa missiva. Mas não havia outra forma de o dizer.

- Preciso de pensar. Isto não pode estar a acontecer. A Margarida não pode estar grávida de outro. Não pode. – respondeu Miguel, num tom de voz sumido e triste.

Ricardo sabia que havia acabado de partir o coração do amigo em mil pedaços, mas nada havia podido fazer para o evitar. Afinal a verdade era só uma – Margarida tinha reconstruído a sua vida e ia ser Mãe. E dessa verdade ninguém poderia fugir.

Em sua casa, Carla olhava para o relógio. Eram quase 21hs, e o seu menino deveria estar quase a chegar. Valia a pena ter sofrido tudo aquilo só para poder ter o prazer e a felicidade de apertar o seu filho nos braços e de o ouvir dizer que a amava muito.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

8

- Preciso de falar com o Miguel o quanto antes! - Ricardo não costumava falar sozinho, mas o choque fora tal que os pensamentos, como se tivessem vontade própria, teimavam em fazer-lhe vibrar as cordas vocais e mover-lhe os lábios até conseguirem sair, como se ouvir o produto do trabalho furioso que se desenrolava no interior do seu cérebro tornasse mais fácil decidir o que fazer. - Não, o melhor é não lhe dizer nada. Mas ele tem de saber. Por que é que a Margarida me meteu a mim no meio desta história? Ora, porque sou o melhor amigo do Miguel, e ela não sabia como abordá-lo. Pois, e agora deixa-me a mim com a batata quente nas mãos...

Depois de percorrer a casa várias vezes como se fosse um animal enjaulado, mas sem ver por onde andava, tal era o turbilhão de pensamentos que não deixava espaço para que o cérebro processasse as informações que lhe chegavam a partir dos olhos, de tal forma que várias vezes tropeçou nos móveis e uma vez até esbarrou contra o umbral da porta do quarto, acabou por decidir que o melhor a fazer seria tomar o seu banho, um banho que lhe lavasse a alma depois do que acabara de ouvir, conforme, aliás, já estava a precisar antes da visita de Margarida, e sair, procurar um pouco de ar da tarde, uma brisa que lhe refrescasse as ideias e o aconselhasse sobre a melhor forma de agir para resolver o assunto a contento.

Despiu-se e entrou no chuveiro. A água a escaldar teve um efeito calmante. Deixou-se ficar ali, em silêncio, mas, ainda assim, as ideias fluíam mais torrencialmente do que a água que lhe caía sobre o corpo. Quando saiu do banho meia hora depois, vestiu uma camisa aos quadrados, umas calças de ganga e um blusão azul e saiu. Não pegou no carro; foi de mota. Atravessou a Ponte da Arrábida e foi até ao Palácio de Cristal, que de palácio tem pouco e de cristal muito menos. Na verdade, do dito palácio só ficou mesmo o nome, porque no seu lugar ergue-se hoje o Palácio dos Desportos - o Pavilhão Rosa Mota. Contudo, Ricardo sempre encontrou nos jardins que o circundam paz e inspiração para resolver os problemas com que se confrontava.

Ao entrar, as recordações de Beatriz e da última vez que aí tinha estado com ela assolaram-no inevitavelmente. Enquanto esperavam por Miguel ("aquele rapaz anda sempre atrasado!", queixara-se Beatriz na altura, e com razão, pois Miguel chegara, como, de resto, era seu costume, com meia hora de atraso), Ricardo tinha feito uma sessão fotográfica nos jardins com a namorada como modelo.

"Bons tempos", pensou, voltando rapidamente ao presente: "E agora o que faço com o Miguel?"
Relembrou a visita de Margarida.

- Então não me convidas para entrar?

- Desculpa, entra, entra. É que não esperava a tua visita, diria mesmo que eras a última pessoa no mundo que esperava ver à porta.

- Acredita que reflecti muito antes de cá vir, mas acabei por chegar à conclusão de que tu és a pessoa indicada para me ajudar.~

Ricardo estremecera nessa altura: "Eu sou a pessoa indicada para ajudar a Margarida? Mas que é que ela me quer?" Margarida prosseguira:

- Como está o Miguel?

- Deves saber que não está bem. Ele tem-me contado que te tem procurado.

- Pois tem, e é sobre isso que quero falar contigo.

- Então?

- Não vou estar aqui com rodeios, que não vale a pena: tu és o melhor amigo dele, e por isso tens de lhe dizer que se afaste de mim de vez.

- E achas que não lhe tenho dito? - exclamara, enquanto pensava para si: "Por mim, ele nunca se tinha era envolvido contigo, que tu não és nem nunca foste mulher para ele, mas ele lá sabe da vida dele."

- Pois, mas tens de ser mais veemente. Ele não me dá espaço, e isso faz-lhe mal e faz-me mal a mim também. E depois há outra coisa... - Margarida interrompera-se; parecia estar à procura das palavras certas, e Ricardo achara por bem esperar que as encontrasse. - Eu conheci outro homem há três meses e estou grávida.

As palavras caíram sobre Ricardo como se lhe tivessem dado uma martelada no crânio.

- G-grávida!? - lembrou-se de ter tartamudeado.

- Sim, grávida de mês e meio.

Se não fosse o desnorte em que ainda se encontrava quanto ao que fazer, Ricardo não poderia deixar de sorrir ao recordar os momentos que se seguiram: ele a tentar compor uma frase com princípio, meio e fim e Margarida a levantar-se muito rapidamente e a dizer que não queria que Miguel soubesse de nada; que, se lhe tinha contado a ele, Ricardo, era porque queria que ele percebesse a importância de a ajudar a afastar Miguel, porque ela já não era a namorada dele nem nunca mais voltaria a ser, e só ele parecia não compreender isso.

Ricardo sentou-se num banco: só a memória das palavras de Margarida tinha conseguido abaná-lo de novo. De repente, deu-se conta de que ainda não tinha almoçado e já eram quase três e meia. Dirigiu-se ao Restaurante do Palácio, entrou e pediu o prato do dia. Quando se sentou à mesa com o tabuleiro, apercebeu-se de que não tinha fome.

De repente, pensou de novo em Beatriz. Nunca mais tinha sabido nada dela desde a sua saída da casa onde ambos moravam. Onde andaria? Teria também conhecido alguém? Teria conhecido alguém quando ainda estavam juntos? Teria sido esse alguém o motivo da sua saída intempestiva? "É melhor não pensar nisso agora; deixa-me ver o que faço com o Miguel. Conto-lhe ou não lhe conto? É melhor contar; afinal, eu já estou farto de lhe dizer para esquecer a Margarida e não resulta. Talvez agora, perante os factos, ele acorde e perceba que acabou definitivamente. Se a Margarida veio falar comigo, devia saber que a minha lealdade é para com o Miguel, e isso implica que não lhe esconda nada que lhe diga respeito directa ou indirectamente. Mas eu nem quero imaginar como o Miguel se sentirá quando souber que a Margarida está grávida doutro homem! Ele não aguenta uma notícia destas... Também tenho de pensar nisso."

Levantou-se e saiu do restaurante, deixando a refeição intacta em cima da mesa. Caminhou mais um pouco à sombra, parou em frente à fonte que havia junto à entrada e saiu do jardim ao mesmo tempo que um autocarro passava. Levantou a cabeça, olhou para um lado, depois para o outro, e desceu em direcção ao local onde deixara a sua mota. A sua decisão quanto ao que fazer estava tomada. Antes de mais, era preciso ligar para a empresa e desmarcar a reunião da tarde; não estava em condições de enfrentar clientes. Depois, era preciso falar com Miguel.

Começou por ligar para a empresa. A secretária atendeu ao fim de dois toques.

- Cristina, por favor desmarcas-me a reunião que eu tinha para a tarde?

- Sim, claro. Que devo dizer ao cliente?

- Olha, diz-lhe o que quiseres, que eu nem para inventar desculpas estou bom.

- Pode ter comido qualquer coisa que lhe fez mal...

- Sim, serve, obrigado. Até amanhã.

"Agora vou ligar para o Miguel, mas ligo de casa." Assim pensando, Ricardo montou na mota e partiu de novo.

terça-feira, 12 de junho de 2007

7

Ao mesmo tempo que Ricardo se surpreendia com a visita inesperada de Margarida, também Carla recebia no escritório uma visita sem aviso, mas mais agradável: a secretária acabava de anunciar a chegada do anterior Presidente do Conselho de Administração, o pai de Carla.

- Vim cá buscar o carro para levar à oficina e aproveito para te levar a almoçar comigo. Queres?

- Papá! Não quero eu outra coisa! - Carla esqueceu por momentos o acidente, o telefonema de Ricardo, a insegurança da primeira reunião (que até não correra tão mal como Carla temera), enfim, a manhã desastrosa no meio de balanços e balancetes de que não percebia patavina. A presença do pai sempre lhe dera segurança, desde criança. - Onde vamos?

- Vou levar-te a um restaurante aqui perto, o Cafeína. Tenho a certeza de que vais gostar.

- O Cafeína? Curioso... Esse restaurante deve estar a fazer sucesso aqui no Porto, pelo que vejo. Só hoje é o segundo convite que recebo para ir lá comer!

- Ai sim? Então e de quem é o outro convite? Já estou a ficar com ciúmes... - brincou o pai.

Carla relembrou então o telefonema do misterioso Ricardo e arrependeu-se de ter aceite. Mas agora tinha dito que sim e não gostava de voltar com a palavra atrás.

"Ele também não morde, espera-se!" Animada com este pensamento, vestiu o casaco e saiu do escritório acompanhada pelo pai, dizendo:

- O outro convite é do homem que me bateu no carro. Diz que quer discutir pessoalmente assuntos relacionados com o acidente, enquanto as seguradoras não se entendem. Vocês, homens, têm de começar a melhorar as desculpas para convidar uma mulher para sair...

O pai não respondeu. Em compensação, e como o restaurante ficava perto dos escritórios da empresa e o tempo começava a mostrar-se primaveril, propôs que caminhassem um pouco à sombra das árvores que cotejavam o passeio, em vez de ir de carro, o que foi prontamente aceite por Carla.

Chegados à entrada, Carla subiu primeiro os degraus de pedra e empurrou a porta de vidro, onde sobressaía colado junto ao rodapé, mas ao nível dos olhos de quem passasse ao fundo das escadas, o autocolante vermelho "Recomendado pelo Guia Michelin", aliás o único elemento fora da sobriedade duma entrada em vidro opaco e madeira castanho escuro. No interior, à direita e à esquerda, homens de fato (a maioria dos quais azuis com botões dourados, como se ser executivo pressupusesse vestir de azul e ter botões dourados; uma espécie de uniforme que permita à classe reconhecer-se entre si) conversavam entre si em voz baixa ao som de jazz ambiente.

A gerente aproximou-se de Carla e perguntou se ainda ia esperar por alguém; ao ver o pai de Carla transpor o umbral abriu-se num sorriso e perguntou-lhe se queria a mesa habitual.

- Pode ser; hoje venho só com a minha filha, que assumiu as minhas funções na empresa. - E depois, virando-se para Carla: - Neste restaurante fechei muitos negócios. Quando quiseres impressionar os teus clientes ou fornecedores, trá-los aqui.

- Obrigada, Papá, mas acho que não vou precisar dessas dicas por muito tempo; não tarda nada estarás de volta à empresa, não é verdade?

- Não sei, minha querida, não sei. O futuro no-lo dirá...

Sentaram-se e espreitaram a ementa.

- Não tenho muita fome, acho que vou escolher este tagliatelle. Adoro espargos, e o tamboril deve combinar bem com a massa.

- Fazes bem, querida, fazes bem. Eu vou para o bacalhau com broa, que costuma ser muito bom.

- E para beber? - perguntou a empregada.

- Um sumo de laranja natural, por favor - pediu Carla.

- E para o senhor doutor?

- Pode ser água, por favor.

"Nestas pequenas coisas se vê que o Papá ainda não superou a perda da Mamã", pensou Carla. Um bom vinho a acompanhar as refeições era um dos pequenos prazeres da vida a que o doutor Fernando Noronha Lima não resistia, mas, desde que perdera a mulher, era raro vê-lo bebendo outra coisa que não água. Este pensamento fez Carla lembrar a sua mãe. A ida para Lisboa há sete anos afastara-a dos pais, e a perda da mãe não a afectara tanto por causa disso. Além da distância dos pais, o drama da gravidez inesperada, a falta de apoio do pai da criança, a abdicação do seu sonho de cursar Medicina, tudo contribuíra para dar a Carla uma resistência ao sofrimento que apenas viria a descobrir com a morte da mãe e dos avós, quando o pai deixou tudo sobre os seus ombros. Todavia, ao olhar à sua frente o aspecto cansado do pai naquele momento, Carla sentiu-se pela primeira vez sozinha, desde que voltara ao Porto.

Lembrou-se do bilhete de Miguel. Pediu licença ao pai, dirigiu-se ao quarto-de-banho, parou em frente ao espelho e remexeu na bolsa à procura da carteira. Pegou nela, abriu-a e releu o bilhete: “Liga-me para tomarmos um café. Quero saber mais de ti! Um beijo, Miguel”.

- Não, desta vez, não! - rasgou o bilhete e deitou-o no cesto dos papéis. Lavou as mãos com o mesmo afinco como se tivesse acabado de tocar um doente contagioso e saiu. Regressou à mesa ao mesmo tempo que o seu tagliatelle com tamboril e espargos chegava.

- Bom apetite - disse-lhe o pai, que tinha também já à frente o prato.

- Obrigado, igualmente.

No final do almoço, levantaram-se e dirigiram-se para a saída. O pai abriu-lhe a porta, que embarrou no chão de madeira escura e quase o fez desequilibrar-se.

- Raio de porta! - resmungou, enquanto lutava para fechá-la; a porta resistia, presa numa lomba do piso do restaurante.

- Calma, Papá! Olha, vamos ver o mar um bocadinho?

Desceram a rua até à marginal e caminharam um pouco. Estava um dia bom, daqueles dias em que não chove mas também não está demasiado calor. O Sol brilhava entre nuvens brancas que pareciam carneiros e corria uma leve brisa que amenizava a temperatura sem ser aquele vento forte e desagradável que levanta areia e torna absolutamente impossíveis estes passeios à beira-mar. Carla e o pai sentaram-se nos bancos cinzentos que salpicam a Avenida do Brasil, junto ao Homem do Leme, à sombra duma das árvores que quase foram destruídas pelas obras que aí se fizeram há poucos anos, e Carla inspirou fundo o sabor da maresia. O mar sempre a fizera sentir bem, desde criança. Recordou os fins-de-semana em que era mais nova e os pais a levavam consigo para a casa de férias, em Vila do Conde. Sentiu saudades desses tempos passados com os pais numa esplanada em frente à praia (a mãe não gostava da areia, dizia que os grãos se metiam em todo o lado, e Carla herdou esse conceito de praia sem areia).

Quis dizer alguma coisa ao pai, mas as palavras não lhe saíram, pelo que se deixou ficar ali com ele, em silêncio.

Passados alguns minutos, o pai quebrou o silêncio para dizer que já eram horas de ir para o escritório, e que ele levaria o carro dali para a oficina. Carla assentiu, levantaram-se e regressaram ao escritório, onde se despediram à porta do gabinete que fora do avô e do pai e agora era de Carla.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

6

Era estranho chegar a casa e percebê-la maior. Um mês depois ainda lhe custava entrar naquela que era a sua casa e sentir que jamais seria igual viver ali.

Comprara-a há um ano e meio, na altura em que resolvera pedir Beatriz em casamento. Apesar da sua fama de Don Juan, Ricardo sempre havia sido completamente apaixonado por ela, e desde que tinham começado a namorar jamais lhe fora infiel. O choque inicial que sofreu quando Beatriz recusou casar com ele foi mitigado pela contra-proposta que ela lhe fez “Ainda somos muito novos. Podíamos experimentar viver juntos. Se resultar logo pensamos em casar. O que dizes?”. A custo aceitara a proposta. Mas amava aquela mulher e não queria perdê-la. Se a vontade dela era viverem juntos, então que se cumprisse.

Conheceu Beatriz no segundo ano de faculdade, e apaixonou-se à primeira vista. Conquistá-la havia sido uma árdua tarefa. Afinal a sua fama de quebra-corações não abonava muito em seu favor. Só ao fim de seis meses é que conseguiu que ela aceitasse sair consigo. Passados mais seis já eram namorados.

Os amigos que nunca acreditaram muito que Ricardo estivesse mesmo apaixonado acabaram por ter de render-se às evidências quando ele lhes comunicou que ia viver com Beatriz.

Há um mês atrás, e de um momento para o outro, Beatriz tinha terminado tudo com ele, saindo de casa em seguida. “Já não te amo”, dissera-lhe ela com uma naturalidade confrangedora, como se fosse possível deixar de amar alguém de um dia para o outro. Não tentou demovê-la. Sempre havia acreditado que amar alguém passava por dar ao outro o que ele precisasse para ser feliz, mesmo que essa felicidade não fosse junto de si. E havia sido com base nesta premissa que não tinha pedido a Beatriz que reconsiderasse. E agora, um mês depois, a ausência dela na casa que ambos haviam partilhado durante mais de um ano ainda doía. Mas, naquela manhã, e depois daquela discussão telefónica que tinha tido com Beatriz logo cedo e que tinha estado na origem da sua distracção e, consequentemente, do seu acidente, algo havia mudado.

Aquela mulher bonita não lhe saía da cabeça. A sua voz doce e meiga ainda ecoava na sua mente. Tinha reparado que no banco de trás havia uma cadeira de transporte de crianças. Mil e uma questões passearam na sua cabeça ao longo de todo o dia. Será que era casada? Será que a cadeira era de um filho? Será que era de um irmão mais novo? Ou será que era de um sobrinho? Não conhecia aquela mulher, mas ela tinha tido o condão de alegrar o seu dia. No entanto, sabia que a sua cara não lhe era estranha. Mas de onde seria? Estava decidido a desvendar o mistério no jantar de sexta-feira.

De repente lembrou-se da conversa com Miguel. Estava preocupado com o amigo. Aquela história com Margarida estava longe do fim, e Ricardo sabia-o muito bem. Só tinha visto Miguel assim uma vez. Nessa altura havia tido razões para isso – afinal fora trocado por um tipo execrável e arrogante. Mas desta vez, com Margarida, as coisas tinham sido bem diferentes. Terminara a relação que tinham porque não tinha certeza de gostar dela, e agora que ela resolvera seguir em frente é que ele havia percebido que, afinal, gostava mesmo dela. Achava curiosa esta forma de sentir do ser humano. Porque seria que as pessoas só descobriam o verdadeiro valor que as outras tinham na sua vida quando as perdiam?

Tentou libertar a mente de todos aqueles pensamentos e dirigiu-se ao quarto. A nova decoração havia ficado perfeita. Aos poucos estava a mudar a decoração da casa. Já tinha alterado o escritório e o quarto. Só faltava a sala, a cozinha e a casa de banho. Queria mudar tudo. Não deixaria qualquer vestígio da passagem de Beatriz na sua casa. Apesar de isso lhe custar muito, ainda.

Estava a precisar de um banho de água bem quente, a escaldar. Como se a temperatura da água conseguisse acelerar o processo de catarse em que se encontrava e tirar Beatriz de vez de si.

Todavia o banho quente teve de ser adiado por causa do toque da campainha.

Do outro lado da porta encontrava-se a última pessoa que imaginava poder procurá-lo – Margarida!!!

terça-feira, 5 de junho de 2007

5

Miguel atendeu o telefone, esperançado. Ao ouvir a voz de Ricardo, não pôde deixar de sentir um certo desalento, que transpareceu na sua reacção:

- Ah! És tu...

- Estavas à espera da rainha de Inglaterra? Ou, pior, deixa cá ver... Estavas à espera da Margarida! Adivinhei? - sem esperar pela resposta, Ricardo prosseguiu: - Quando é que percebes que o passado já acabou e não volta? Tens é de concentrar-te no futuro. Olha, a Freira respondeu-te ao meu convite?

- Eu não sei se te desligue o telefone na cara ou se te diga o que penso sobre a tua atitude. Oh Ricardo, tu dizes-te o meu melhor amigo e fazes-me uma coisa destas? Agora a Freira deve estar a pensar, e muito bem, que eu sou um descaradão, e a culpa é toda tua!

- Ai, que estamos tão preocupados com o que a Freira pensa ou deixa de pensar. Oh homem, anda lá, ela tem um corpinho jeitoso e tu és um homem livre e descomprometido. Vai sair com ela e logo vês no que dá. Até podes descobrir o amor da tua vida; ou pelo menos duma noite...

- Quantas vezes tenho de te dizer que o amor da minha vida já está descoberto?

- Sim, outra vez a história da Margarida. Quando é que percebes que ela não volta?

- Eu sei que hei-de reconquistá-la. Ela não deixou de me amar; está apenas adormecida e cabe-me a mim voltar a acordá-la.

- Acorda mas é tu para a vida, rapaz, que assim não vais a lado nenhum. Olha para mim, ainda hoje converti um desastre numa boa hipótese de engate.

- Hã?

- Hoje de manhã tive um acidente de carro. Nada grave, não te preocupes. O que é certo é que, à custa disso, fiquei com o número duma miúda com um corpinho tão perfeitinho como o da tua Freira. Já lhe telefonei e vamos jantar na próxima Sexta. Queres melhor?

- Ricardo, Ricardo, ganha juízo, rapaz, ganha juízo!

- Tu é que tens de ganhar juízo e esquecer a Margarida de vez!

- Olha que não, olha que não. Já te contei os avanços?

"Avanços, avanços... Só se for avanços de marcha-atrás; este tipo nunca mais sai da cepa torta. Quando é que ele percebe que a Margarida já o esqueceu e está muito bem assim?", pensou Ricardo. A sua boca, porém, calou estes pensamentos e optou por algo mais inóquo:

- Não, alguma coisa de importante?

- Ontem telefonei-lhe, mas ela não atendeu.

"Grandes avanços! É o que eu digo..."

- Uma pergunta: ama-la?

- Como é que sabes se amas uma pessoa? - respondeu Miguel.

- Isso tens de ser tu a perguntar a ti mesmo e a descobrir a resposta. É diferente de pessoa para pessoa.

- Eu achava que havia muita coisa mal na nossa relação. Agora, olhando para trás, chego à conclusão de que as coisas que estavam mal estavam em mim, não na relação em si. Acabo por chegar à conclusão de que tinha ali alguém que me amava e já tinha dado provas disso, e eu preocupava-me com coisas insignificantes e deixava essas coisas insignificantes ofuscarem algo muito maior. Vou contar-te uma coisa: este fim-de-semana passei à porta de casa dela. Fiquei mesmo mal, só com as recordações que aquele prédio me traz...

- Isso tudo é amor, meu caro. O problema é que ela já deixou bem claro que não quer que voltes a aproximar-te dela. Não te iludas, Miguel, porque o que te interessa verdadeiramente é que ela te abra as portas, e ela tem-nas todas fechadas desde que vocês se afastaram. Eu sei perfeitamente que este meu discurso é desanimador, sei que já to disse um montão de vezes, mas não creio que estaria a ser teu amigo se concordasse contigo forçosamente em nome de uma luta que não vale a pena, a meu ver. Já sabes que eu sou da opinião que, quando a bola está do nosso lado, e quando o assunto é amor, uma boa luta vale sempre a pena, só que, neste caso, não me parece que tenhas muitas hipóteses de vencer; ela não me parece disposta a sequer deixar-se ser disputada.

- Eu já decidi que vou lutar até ao fim.

Ricardo suspirou:

- Vamos ver é se saberás perceber quando é o fim...

- Bem, eu vou lutar. Se não o fizer, estarei a abdicar à partida daquilo que quero. Por muito difícil que seja, mesmo impossível, pelo menos terei a consciência de que lutei. Doutra forma, viverei eternamente a pensar que não fiz o mínimo esforço por aquilo que queria.

- Como te disse, eu sou sempre por uma boa luta quando o assunto é amor, mas dado o meu entendimento sobre a questão, não sei se valerá muito a pena. Mas, claro, isso é algo que te compete a ti pesar, e não a mim. Já sabes a minha opinião, e sabes também que podes sempre contar com a minha amizade, mesmo que metas os pés pelas mãos, como estás a fazer agora. Só quero que me prometas uma coisa...

Miguel sorriu. Sabia bem até onde ia a amizade de Ricardo, e sabia que "contar com ele" não eram palavras desprovidas de sentido.

- Diz lá o que queres que te prometa.

- Que, se a Freira te telefonar, combinas qualquer coisa com ela. Tu precisas de afastar os pensamentos da Margarida, dê lá por onde der!

- Prometo que vou pensar nisso.

- Miguel!

- Sim, Ricardo!

- Não te faças de desentendido!

- Ricardo, como podes pedir-me uma coisa dessas, se o meu coração pertence à Margarida?

- Não te peço que te cases com a Freira! Apenas que vás sair com ela. Como sais comigo e com o pessoal. Faz-te bem estar com pessoas; enquanto estás, não pensas na Margarida e não deprimes.

- Eu não estou deprimido!

- Sim, já sei que não estás deprimido - o tom de voz de Ricardo era agora condescendente, como se Miguel fosse uma criança que fazia birra quando era contrariada. - Mas sempre podias estar mais animado, sabes? Bem, tenho de desligar, que há trabalho para fazer. Depois conto-te como correu o jantar de Sexta. Prometes?

- Prometo que, se ela telefonar, combino com ela qualquer coisa se tu também fores.

- Melhor do que nada. Eu levo um castiçal, sim? E agora tenho mesmo de desligar.

- Vá, um abraço, se bem que tu não mereças. Ainda estou zangado contigo por causa do que me fizeste no Sábado!

- Um dia hás-de agradecer-me. Até logo! - Ricardo desligou o auscultador e pensou de repente na mulher com quem tivera o acidente. "Eu conheço aquela cara dalgum lado...", pensou. "Logo lhe pergunto da vidinha na Sexta e já fico a saber onde nos cruzámos antes de hoje."