quinta-feira, 30 de agosto de 2007

30

Aquele sábado de Julho havia amanhecido frio e nublado. Com o céu a ameaçar chover a qualquer instante, Carla abraçou-se a si mesma e pensou no que se aproximava, sentindo, de seguida, um arrepio intenso que a assustou.

Andava a adiar aquela conversa desde o dia em que descobrira que estava grávida, mas tinha plena consciência de que não o podia fazer mais. Era imperativo contar a verdade ao Pai. E sabia que não seria uma conversa fácil, acima de tudo porque lhe havia mentido ao dizer-lhe que não se lembrava de nada do que havia acontecido naquela noite.

Quando o Pai chegou, Carla respirou fundo e pediu-lhe que se sentasse.

_ Papá, precisamos de ter uma conversa muito séria... Mas peço-te que me ouças até ao fim, sem interrupções, por favor. – pediu Carla ao Pai, em jeito de súplica.

Fernando anuiu, com a calma e a serenidade que faziam dele o homem de força e coragem que sempre havia sido toda a sua vida.

E então, num rasgo de coragem misturado com um desespero latente, Carla abriu a alma ao Pai e contou-lhe toda a verdade. Falou-lhe da festa. Falou-lhe dos olhos verdes e do sorriso malandro de Miguel. Falou-lhe da rivalidade que sempre existira entre ambos. Falou-lhe da alcunha que lhe havia dado. Falou-lhe do misto de emoções quando ele, naquela noite, pronunciou o seu nome. Contou-lhe, meio envergonhada e sem muitos detalhes, como tudo tinha acontecido, e como, no dia seguinte, Miguel não se lembrava de nada do que se havia passado entre ambos. Explicou-lhe, ainda, que, no dia seguinte, ao chegar ao Colégio, Miguel não se lembrava de nada do que havia acontecido. Falou-lhe ainda do desespero que senti ra ao descobrir que estava grávida, e da necessidade de mentir e dizer que não revelar a identidade do Pai de Tomás. Falou ainda do reencontro com Miguel naquele Bar, e no bilhete que ele lhe havia feito chegar pelas mãos do Barman, e que, dias depois, deitara fora. Falou-lhe da assustadora coincidência de ter sofrido aquele acidente com Ricardo e de este ser nem mais nem menos do que o melhor amigo de Miguel. Falou-lhe ainda do que começava a sentir por Ricardo e da assustadora verdade nas suas palavras da noite anterior. Por fim revelou-lhe o seu mais intimo receio – que Miguel soubesse que era Pai de Tomás e quisesse tomá-lo de si.

Quando acabou de falar, Carla esperou que o Pai dissesse alguma coisa. E aqueles trinta segundos em que o Pai manteve o seu silêncio sepulcral pareceram-lhe uma eternidade.

- Minha Filha, olho para ti e vejo a mulher forte que tanto admiro e a menina frágil e perdida que com 16 anos engravidou. Achas mesmo que durante todos estes anos nem eu nem a tua Mãe iríamos fazer o que quer que fosse para saber quem era o Pai do nosso neto? Subestimaste-nos, minha querida. Levou algum tempo, cerca de dois meses e meio, a descobrir toda a verdade, mas chegamos lá. Nunca te contamos porque sabíamos que isso ia fazer-te mal. Éramos teus Pais e queríamos-te feliz. É certo que nos entristecia a tua falta de confiança em nós, mas fomos capazes de compreender os teus “porquês”, e de proteger os dois bens mais precioso que tínhamos – tu e o Tomás. – disse-lhe o Pai, contra todas a expectativas. Carla jamais seria capaz de imaginar aquilo que acabar de ouvir da boca do Pai.

- Mas, se vocês sempre souberam, porque é que permitiram que o Eduardo assumisse a paternidade do Tomás?

- Para vos proteger aos dois. Não entendes? Se o Tomás fosse registado com pai desconhecido haveria lugar a uma averiguação oficiosa de paternidade, e a verdade que tu tanto temias acabaria por vir ao de cima. Informei-me junto dos nossos Advogados, e eu e a tua Mãe chegamos à conclusão de que a melhor solução seria aquela, e não outra.

- Percebo... Então vocês sempre souberam que eu... que eu... vos menti... – disse Carla com o último fio de voz que lhe restava.

- Sempre soubemos, mas sempre percebemos. Talvez se estivéssemos no teu lugar fizéssemos o mesmo. A tua “mentira” foi para proteger o teu Filho. E essa foi a maior prova de amor por ele que tu alguma vez deste. Aquela e esta, agora. Não te importaste com aquilo que eu pudesse pensar de ti. Não te importaram os meus julgamentos ou as minhas reacções. Como uma boa Mãe que foste desde o momento que descobriste que estavas grávida, o teu primeiro instinto foi proteger o teu Filho. E perante isso, não há julgamento algum que possa ser feito.

Rendida perante os argumentos do Pai, Carla deixou pender os braços ao longo do corpo, deixando-se cair, em seguida, num poltrona que estava mesmo ao seu lado.

- E agora, Papá? O que é que eu faço com o Ricardo? E se ele descobre que o Tomás é filho do melhor amigo dele? E se o Miguel descobre toda a verdade? Eu não quero perder o meu Filho. Não quero.

- Vamos lá ter calma. O primeiro passo é eu reassumir o meu cargo. Já chega de ter pena de mim mesmo. Tenho uma Filha e um Neto que amo muito e que precisam de mim. Volto à empresa na segunda. Quanto ao resto não podemos precipitar-nos. Vamos ver como as coisas acontecem e depois logo decidimos o que fazer. Entretanto quero conhecer esse Ricardo...

Nisto, Tomás irrompeu pela sala, e saltou de imediato para o colo do Avô.

- Vôzinho, estava cheio de saudades suas! – disse o Menino num tom meigo e sincero.

Ao ver o embrulho que o Avô lhe estendia, os olhos de Tomás brilharam. Num ápice rasgou o embrulho, e o seu rosto encheu-se de alegria quando viu o que lá estava dentro.

- A camisola nova do Benfica!!! Obrigada Vôzinho, vou já vestir. – disse, saltando de seguida para o chão. No corredor ouviu-se a sua voz chamar por Elisa, mas logo se calou.

Até nisso era igual ao Pai, na paixão pelo futebol e pelo Benfica – o clube do coração de ambos.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

29

O dia tinha sido passado mergulhado em pensamentos contraditórios que se sucediam uns aos outros a uma velocidade vertiginosa, entrecortados por tentativas tão erráticas como infrutíferas de afastá-los e de se concentrar noutra coisa. Queria estudar e não conseguia; queria sair e não tinha vontade. Assim tinha sido também o dia anterior, desde a conversa com Mário, logo de manhã na esplanada do café. Depois da ida inútil à faculdade, viera para casa e aí se deixara estar. À noite, custara-lhe adormecer; ficara horas a virar-se para um lado e para o outro na cama.

No dia seguinte ao acordar, a cabeça doía-lhe como se fosse explodir, mas, no meio de toda a torrente de ideias que lhe fluíam pela mente, uma se impôs às outras: a sua gravidez.

Não tinha contado a Mário que ia ser pai. Quando soubera da gravidez, ao fazer um daqueles testes da farmácia por estranhar o atraso no período, logo ela que sempre fora tão regular, reagira de forma que agora lhe parecia inesperada e contra toda a lógica, mas que na altura lhe parecera a mais acertada: a primeira pessoa com quem falara fora Ricardo, para que este fizesse Miguel afastar-se de si. Olhando para trás, não sabia por que o fizera; com o tempo acabara por acreditar que fora com o objectivo de magoá-lo e fazê-lo sofrer o mais possível, ou talvez apenas para lhe fazer ciúmes, mas na altura fizera-o porque se sentia bem com Mário e queria que Miguel deixasse de procurá-la e lhe desse paz e espaço para viver o seu novo amor. Porém, logo se arrependera, e, talvez por isso, adiara a conversa que iria ter com Mário. Ao ver Miguel no hospital, reforçara o sentimento de que este ainda significava muito para si, e, talvez porque se sentira a perdê-lo (ou talvez o tivesse já perdido definitivamente), quisera instintivamente reconquistá-lo. Na esplanada, sentira-se a mais infeliz do mundo, abandonada por Mário e por Miguel, completamente só.

Sobrava-lhe o seu filho, uma dolorosa recordação destes últimos meses, um fardo que não se sentia preparada para carregar sozinha. Quando tinha Mário do seu lado, sentia-se capaz de tudo, mas assim não. Além do mais, ele não sabia e Margarida não sabia como ele iria reagir se lhe contasse agora que tudo tinha acabado. Agora que pensava nisso à distância duma semana e alguns dias, perguntava-se se o motivo que a levara a adiar não fora, já aí, medo da reacção de Mário.

Fosse como fosse, era melhor assim, era preferível que ele não tivesse sabido nem nunca viesse a saber; sobretudo depois da sua decisão.

Margarida não consultara os pais nem nenhuma outra pessoa. Esta era uma decisão sua, que só a si competia, e que não queria partilhar com ninguém. Não queria dividir o fardo com ninguém, nem queria que ninguém soubesse a verdade.

De repente, deu consigo a reflectir o quão irónica a vida podia ser: fazia naquele dia precisamente três meses que votara no Referendo. Três meses antes, dissera não ao que agora dizia sim, apenas porque a realidade lhe batera à porta a si. Sentiu-se hipócrita e egoísta, mas consolou-se dizendo que nunca é tarde para mudar de opinião e descobrir um novo caminho. Ainda mais irónico era o facto de a sua decisão hoje ser possível graças a todas as pessoas que há três meses discordaram de si. Sentiu-se agradecida por outros terem visto o que fora incapaz de ver.

Era Sexta-feira e já era tarde para telefonar ao seu médico; fá-lo-ia depois do fim-de-semana.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

28

Fechou os olhos e recostou-se no sofá do escritório. Precisava daquele momento de pausa antes do jantar. Ricardo deveria estar quase a chegar e Tomás estava numa agitação fora do comum.

Sentia-se física e psicologicamente cansada. Não sabia o que esperar daquele jantar. Falara com Ricardo duas ou três vezes durante a semana e notara-o diferente. Aquele momento, naquela noite em que o susto da febre de Tomás tinha tomado conta dos dois, havia sido intenso demais. Repentino demais. E sabia, por experiência própria, que nada que fosse repentino daria bom resultado. Existiam obstáculos demais entre os dois. Mas a verdade era que naquela noite, enquanto Ricardo a abraçava, havia desejado, mais do que devia, que aquele beijo tivesse acontecido de verdade. Fechou os olhos com mais força, numa tentativa vã de apagar aqueles pensamentos da sua mente. Ricardo era impossível. E quando ele soubesse da verdade, iria afastar-se de imediato. Afinal, Miguel era, ainda, o seu melhor amigo. E contra isso não poderia lutar.

Recordou-se da conversa com Eduardo e Leonor. E percebeu, que antes que fosse tarde demais, teria de revelar toda a verdade ao Pai. Ele saberia, com toda a certeza, ajudá-la da melhor maneira possível.

Um leve bater na porta do escritório fez Carla regressar à realidade. Era Elisa a anunciar a chegada de Ricardo. De tão embrenhada nos seus próprios pensamentos que se encontrava, nem escutou a campainha tocar.

- Obrigada, Elisa. Diga ao Dr. Ricardo que em cinco minutos estarei na sala. O Tomás já está mais calmo? – perguntou, por fim, a Elisa.

- Já sim, Menina. Mas foi difícil. – respondeu-lhe Elisa, saindo de seguida.

Depois de respirar fundo, Carla saiu do escritório ao encontro de Ricardo. Quando chegou à porta da sala não foi capaz de entrar. A cena que presenciou fê-la sentir um aperto imenso no peito. Tomás estava sentado ao colo de Ricardo, e os dois pareciam entender-se muito bem. Ricardo falava e Tomás parecia gravar cada palavra na sua mente, como se não quisesse deixar escapar uma que fosse. De repente, ambos perceberam a sua presença. Enquanto Tomás saltava do colo de Ricardo para abraçar a Mãe, este levantava-se do sofá e presenteava Carla com um sorriso discreto, mas meigo. Por momentos, Carla sentiu-se, mais uma vez em perigo. A cena que acabara de presenciar tinha tido em si o efeito de uma descarga eléctrica. Aquele homem estava a tornar-se importante na sua vida, sem que ela conseguisse entender o porquê , e até Tomás parecia gostar muito dele. Na verdade pareciam gostar bastante um do outro. Mas isso poderia ser só impressão sua.

Durante o jantar, Ricardo puxara o assunto do Colégio. Carla, a contra-gosto, acabara por revelar-lhe em que Colégio tinha andado, e confirmava-se que ambos haviam frequentado o mesmo Colégio.

- Então a Carla deve conhecer o Miguel Lopes Menezes? Ele era do seu ano. – perguntou-lhe Ricardo.

- Sim, conheço. Ele era da mesma turma que eu. – respondeu-lhe Carla incomodada.

Ricardo, que percebera o incómodo de Carla, ainda referiu o nome de Miguel mais algumas vezes durante o jantar, numa atitude que, claramente, havia aumentado o desconforto da sua interlocutora. As suas suspeitas começavam a ganhar contornos mais definidos. De repente, como se uma luz se acendesse na sua mente, Ricardo recordou-se da “Freira”, e então tudo fez um novo sentido. Carla havia abandonado o Colégio por altura das férias da Páscoa, pouco mais de um mês depois daquela malfadada festa de Carnaval. Não podia ser. Mas parecia tudo tão evidente, naquele momento, na sua mente.

Os pensamentos de Ricardo haviam sido interrompidos por Tomás.

- És amigo da Mamã, ou és namorado dela? – perguntara Tomás, com a ingenuidade característica das crianças inocentes.

- Tomás! Isso é pergunta que se faça? – repreendeu-o Carla, atrapalhada com a pergunta do Filho. – Não lhe ligue, Ricardo. Ele não sabe o que diz.

- Sei, sei. – respondeu Tomás – Se o Tio Ricardo for teu namorado vai ser meu Papá. E eu gostava. Porque os outros meninos têm e eu não.

Carla notara a tristeza que, naquele momento, ensombrara os olhos do Filho e sentiu o coração ficar pequenino dentro do peito. Ricardo também percebera, e por isso respondeu-lhe prontamente.

- Por enquanto sou só amigo da tua Mamã, mas nunca se sabe se não serei namorado, um dia.

Carla olhara Ricardo com um misto de surpresa e desagrado. Não era correcto que ele dissesse aquelas coisas a Tomás.

- Vá Tomás, está na hora de ir dormir. – disse-lhe Carla, num tom mais forte do que o normal.

Perante a forma como a Mãe falara, Tomás nem sequer havia pensado em pedir para ficar mais um pouco. Despediu-se da Mãe e de Ricardo com o habitual beijinho de boa noite, e deixou-se levar para o quarto por Elisa.

Depois de ficarem sozinhos, Carla quebrou o silêncio.

- Não devia ter-lhe dito aquilo. Ele agora vai ficar cheio de ilusões a seu respeito, Ricardo. E isso não é justo...

- Por que não? Todas as crianças merecem ter um Pai. Por que não eu? Não sei o que se passa comigo, connosco... Mas a verdade é que ambos sabemos que mais tarde ou mais cedo não seremos capazes de controlar isto que há entre nós. Carla, olhe para mim.

- Não, Ricardo, não pode ser... – e sem mais explicações virou-lhe as costas e dirigiu-se à varanda.

Ricardo seguiu-a.

- Amanhã falamos, Carla. Mas este assunto não terminou aqui. E ambos sabemos perfeitamente disso. – e dizendo isto, deu-lhe um beijo na testa e saiu.

Enquanto Carla se havia dirigido ao quarto do Filho para lhe dar mais um beijo de boa noite, Ricardo, já sentado ao volante do carro pensava para consigo mesmo – “Eles conhecem-se mesmo. Tenho de saber a verdade...”

A alguns quilómetros dali, Margarida acabava de tomar uma decisão. Talvez a mais importante que até então havia tomado, em toda a sua vida.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

27

Margarida, entretanto, continuava sentada na esplanada do café, sozinha e atordoada com o que acabara de ouvir. As palavras de Mário ainda reverberavam como um estranho eco nos seus ouvidos, como se ele tivesse falado numa língua que ela não conseguisse compreender.

– Margarida, precisamos de conversar – dissera-lhe ele, ignorando toda a história que ela lhe contara detalhadamente, acto que a colocara logo de sobreaviso, pois não era hábito de Mário cortar assim uma conversa para mudar tão bruscamente de assunto, e muito menos com aquele ar solene com que anunciara que precisavam de conversar. Margarida pressentira-o, não sabia bem como nem porquê, mas pressentira que algo de muito ruim estava para acontecer e não se enganara. A medo, ignorando em absoluto, mas como como que já sabendo de antemão o que iria passar-se, retorquira um simples “sim, diz” com total indiferença, como se nada do que Mário tivesse para lhe dizer pudesse afectá-la minimamente.

– Não podemos continuar juntos – atirara ele de chofre, à queima-roupa, sem quaisquer contemplações e sem sequer pestanejar. No seu olhar, Margarida recordava agora uma frieza que não só não lhe conhecia, como nem sequer sabia explicar, como se a separação fosse algo há muito premeditado e minuciosamente planeado, como se não lhe custasse minimamente expulsá-la assim da sua vida.

Margarida não lhe perguntara porquê. Aliás, não dissera nada, nem se lembrava das razões que ele lhe dera, se é que lhe dera alguma. Devia ter dado; afinal, não se acabava uma relação que, ainda que curta, tinha gerado – ou estava a gerar, dependendo do ponto de vista – um filho sem dar uma explicação, um motivo qualquer, alguma coisa que acontecera, que Margarida dissera ou fizera que não lhe agradara, ou que simplesmente deixara de gostar dela, mesmo isso sem outras elaborações seria aceitável. Devia ter dado todos os motivos e mais alguns, provavelmente muito plausíveis e perfeitamente compreensíveis, mas Margarida não conseguia lembrar-se dum só. Naquele momento, os sentimentos dentro de si andavam à deriva.

Diz-se que só se dá valor ao que se tem depois que se o perde; estaria porventura isso a passar-se com Margarida? Há pouco mais de vinte e quatro horas, estivera em casa de Ricardo chorando a perda de Miguel, mas agora só conseguia pensar em todos os bons momentos que passara ao lado de Mário nos três meses e alguns dias em que estiveram juntos e no filho que ele lhe dera. Sentia-se dividida e, o que é pior, sentia-se desorientada, como numa encruzilhada sem saber que caminho seguir.

Deixou-se estar mais um pouco na esplanada. Veio-lhe à memória a tal lei da acção-reacção que lera na revista e não pôde deixar de se sentir mais triste ao pensar que as suas acções ultimamente foram premiadas com reacções contrárias às que desejaria. Fechou os olhos por um momento, mas o ruído duma ambulância a aproximar-se fê-la reabri-los rapidamente e lembrar-se de Miguel; quem sabe não teria sido naquela mesma ambulância que ele fora levado ao hospital? Afastou o pensamento: “Do que tu te foste lembrar, rapariga! Sempre tens cada ideia mais peregrina!” Miguel, Mário, Mário, Miguel... Reparou então na coincidência da primeira letra dos três nomes: Miguel, Mário e Margarida. “Mas que raio de ideias que estás a ter! Levanta-te e vai mas é para a faculdade, que daqui a pouco tens aulas.”

Assim fez; apanhou o autocarro e saiu na paragem em frente à faculdade. Pelo caminho, enjoou; sempre lhe acontecia isso quando viajava sentada de costas. “Quando é que aprendes a não te sentares nestes bancos?”, recriminou-se, sabendo todavia da inutilidade de tal acto de contrição, porquanto voltaria a fazer o mesmo na próxima oportunidade, tal era a preguiça de viajar de pé. Bom era o metro; aí nunca enjoava. Ou então ir de carro; não tinha carta, mas sempre andava à boleia. Gostava do carro de Miguel; dizia-lha muitas vezes, meio a brincar, meio a sério, que, quando tirasse a carta, compraria um carro igual ao dele, ou mesmo o seu em segunda mão, se ele resolve trocar por um novo. O carro de Mário não lhe agradava tanto, pois fazia-a sentir-se um pouco esmagada lá dentro. Era um carro pesado. Mário falava dele com satisfação, quase orgulho, cavalos para aqui, cilindrada para ali, dos zero aos cem em não sei quantos segundos, binário isto e aquilo; Margarida não percebia nada, mas gostava de ouvi-lo.

Entrou na faculdade com a cabeça inundada por Mário e Miguel, que competiam entre si pela maior fatia do seu pensamento, nem se apercebendo de não circulava ninguém pelos corredores. Só quando chegou à porta do anfiteatro e a encontrou fechada é que se lembrou que era a semana da Queima das Fitas e que não havia aulas. “Para o que havia de dar-me: vir para a faculdade sem ter aulas... Estou mesmo desnorteada”, pensou.

Mas logo o mesmo pensamento tomou a sua mente de assalto. Aquilo que lhe parecera tão certo já não o era de novo. Depois de falar com Ricardo, Miguel era o homem da sua vida e Mário uma brincadeira destinada a fazer-lhe ciúmes. No entanto, agora que Mário lhe dissera, sem contemplações, que não podiam continuar juntos, sentia a sua falta, a segurança que lhe dava aninhar-se nos seus braços, a experiência dum homem mais maduro, deixar-se guiar por ele.

Saiu da faculdade pela porta por onde entrara e parou para pensar, ou talvez para tentar esvaziar a mente de pensamentos, já não sabia bem. Quando pensava que tinha conseguido e ia ter um momento de paz, uma outra dúvida assolou-a:

– E o meu filho? – murmurou.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

26

Miguel soergueu-se na cama, mas logo voltou a deitar-se, por causa das dores. Era a terceira vez em três dias que tinha o mesmo sonho. “O que está a passar-se comigo?”, interrogou-se. Não conseguia compreender por que motivo o filho de Margarida se intrometia no seu sono; muito menos porquê daquela forma. “Não sou um assassino!” Não havia dúvidas: estar preso no hospital estava a começar a afectar-lhe o juízo. Infelizmente, tinha ainda pela frente um longo mês deitado na mesma cama, segundo lhe tinha dito o médico que o operara. “Se ao menos tivesse aqui os meus pais…”

Como por magia, as suas preces pareceram ter sido ouvidas, porque nesse momento a porta abriu-se para deixar entrar primeiro a mãe e depois o pai de Miguel. Disse-lhe aquela:

‒ Então, meu querido, como estás hoje?

‒ Igual a ontem, deitado aqui esparramado nesta cama prestes a enlouquecer. – queixou-se, deixando escapar todo o seu azedume. ‒ Trouxe-me o jornal?

‒ Claro, meu querido! – exclamou a mãe, e estendeu-lhe um jornal enrolado e atado com uma fita plástica.

‒ Obrigado. Posso pedir outra coisa?

‒ Diz, meu querido!

‒ Dava para me trazerem uma televisão para aqui? Este raio de hospital é uma pasmaceira que só visto…

‒ Acho que podemos fazer isso. E o teu portátil, também o queres? – lembrou o pai.

‒ Ora aí está uma boa ideia. Como foi que não me lembrei disso antes!? Obrigado, Papá! – Miguel sorriu pela primeira vez nos últimos dias ao pensar no seu adorado computador. – Vou ocupar-me do SOM; vai sair daqui pronto!

Miguel sentiu a excitação crescer dentro de si enquanto pensava no seu sistema operativo e no trabalho que ainda tinha pela frente; era nestas alturas que se sentia certo de que escolhera o curso certo. Porém, uma dúvida surgiu a enevoar-lhe o horizonte: como mexer no computador com um braço partido? Porém, a dúvida logo se dissipou: “Uso só um braço; vai demorar mais, mas serve. Também não tenho pressa.”

‒ Que bom ver-te assim animado! – a mãe acariciou-lhe a cabeça, passando a mão pelos cabelos. – Como estás das dores?

‒ Mais ou menos o mesmo. Não posso sentar-me nem virar-me, e agora dói-me o rabo de estar sempre na mesma posição.

‒ Vais ver que não tarda já estás bom outra vez! – animou-o o pai.

‒ Quem me dera… – suspirou Miguel. – Estou tão aborrecido de estar aqui…

‒ Já não dirás isso quando te trouxermos o computador, que eu bem te conheço – disse-lhe a mãe em tom de brincadeira.

Miguel corou um pouco. Era verdade que o computador conseguia captar a sua atenção por inteiro; várias vezes Margarida se queixara de que o computador lhe merecia mais atenção do que ela, e ele reconhecia‑lhe alguma justiça nessa acusação. Mas não queria agora pensar em Margarida, nem no filho dela. Não foi contudo a tempo de ocultar Margarida do olhar da mãe, que lhe perguntou directamente:

‒ Estás a pensar nela, não estás?

‒ Sim…

Miguel recordou o sonho que vinha tendo, aquele sonho que o atormentava recorrentemente há três dias. Durante um momento ponderou falar sobre isso aos pais, mas optou por mudar de assunto:

‒ E então, contem-me coisas do mundo lá fora, que o jornal só traz notícias enfadonhas de muito longe. Que é que se tem passado na nossa bela rua?

‒ Olha, está tudo na mesma. Há dias partiram a montra da loja da florista da esquina, mas nem sei se roubaram alguma coisa.

‒ E do carro, há novidades?

‒ Parece que não tem reparação possível – respondeu-lhe o pai.

‒ O meu carrinho…

Ficaram os três em silêncio e Miguel olhou pela janela. Gostava imenso do seu carro, sobretudo pelas recordações que lhe trazia, muitas delas ligadas a Margarida e aos passeios que costumavam dar juntos…

‒ Estava na hora de mudar de carro – afirmou determinado.

Os pais estranharam a súbita reacção à perda do carro, mas não disseram nada. Dalguma forma, perceberam que tinha a ver com Margarida e não quiseram forçar o filho a pensar nela de novo.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

25

Margarida chegou ao café pontualmente, deu uma espreitadela e voltou a sair, sentando-se na esplanada praticamente vazia. Ele ainda não tinha chegado e ao seu lado apenas uma mesa estava ocupada com três clientes com todo o aspecto de serem orientais – japoneses, talvez. Pegou numa revista e começou a ler, mas não estava verdadeiramente concentrada: Miguel não lhe saía da cabeça. Recordou, uma vez mais, a conversa que tiveram dois dias antes, a forma como Miguel a mandara embora do Hospital e da sua vida e sentiu-se só como nunca se sentira. Tentou afastar estes pensamentos e concentrar-se na leitura:

“A física aplicada à vida quotidiana produz resultados espantosos. Por exemplo, uma das leis de Newton, a lei da acção-reacção, diz que toda a força aplicada sobre um corpo desencadeia outra da mesma intensidade mas de sentido oposto. Aplicada às relações humanas, cada acção que exercemos sobre o próximo, aqui entendido como a pessoa que connosco se relaciona, desencadeia nele uma reacção de igual intensidade, mas de sentido oposto. Contudo, no caso do Homem, nem sempre a intensidade da reacção é igual”, dizia a cronista na sua coluna. Margarida pousou novamente a revista e fechou os olhos, meditando sobre o que acabara de ler.

Não teve, porém, muito tempo para meditar, porque entretanto a esplanada entrou em rebuliço. Sem que Margarida tivesse dado conta, outro cliente tinha ocupado uma mesa na esplanada e pedido um café em chávena escaldada. Quando o empregado do café, vestido na sua farda branca com botões dourados, lhe trouxe o pedido, trouxe também a conta:

‒ Um euro e vinte, por favor.

‒ Como!? – exclamou o cliente, que estava vestido com uma fato cinzento já gasto e usava barba com aspecto pouco lavado (Margarida pensou para si que o cliente ou era artista – um desses preconceitos que levam a ver o mundo da arte como tendente a contrariar as normas sociais, nomeadamente no que ao vestuário diz respeito – ou não era cliente nenhum e estava ali apenas para tentar conseguir um café sem pagar).

Margarida não conseguiu ouvir a resposta do empregado, mas apenas a explicação, já um pouco exaltada, do homem do fato cinzento:

‒ Não pago nada; eu sou um cliente habitual e você já devia conhecer-me, por isso não tenho nada que pagar!

O empregado do café retorquiu:

‒ O senhor desculpe, mas esta é a regra da casa: na esplanada, o serviço é pago no acto; eu não posso fazer doutra maneira.

‒ Eu ainda estou à espera dum amigo meu, que ficou de encontrar-se comigo aqui, por isso não vou pagar nada até ele chegar.

‒ Desculpe, mas tem de pagar – afirmou o empregado peremptoriamente; no seu tom de voz notava-se que já estava a ficar desagradado com a situação.

‒ Tenho de pagar o quê? Tenho de pagar o quê!? – gritou o cliente, levantando-se, e, sem aviso, deu uma bofetada na cara do empregado, que se desequilibrou para trás e deixou cair o tabuleiro, derrubando tudo o que estava em cima da mesa onde se encontravam os japoneses, que se levantaram e debandaram, deixando para trás uma nota de cinco euros sem se preocuparem em receber o troco.

Os copos e as garrafas partiram-se em mil bocadinhos ao caírem sobre o chão de pedra cinzenta, fazendo um alarido que alertou os empregados no interior do café, que foram chamar o gerente. Entretanto, um senhor que ia a passar na rua, vendo a situação, agarrou o homem do fato cinzento quando este se preparava para atacar novamente o combalido empregado, que apenas repetia incessantemente:

‒ Ele agrediu-me! Ele agrediu-me! Olhem para isto! – mostrava o casaco branco sem botões, pois tinham sido todos arrancados durante a refrega. – Ele agrediu-me!

Enquanto isso, o homem do fato cinzento ia dizendo imprecações contra o empregado:

‒ Eu venho aqui há mais anos do que esse garoto aqui trabalha e vem ele agora dizer-me que eu tenho de pagar!? – Virou-se então para o gerente, que vinha afogueado: ‒ Este miúdo não me atende mais! Ou o despedem, ou eu não venho cá mais; a opção é vossa!

O gerente tentou acalmar o cliente, mas este, ainda exaltado, apenas repetia a mesma frase – não venho cá mais enquanto ele cá estiver. Aproveitando o facto de ter de novo liberdade total de movimentos, foi atrás do empregado e deu-lhe mais um pontapé. Este ia responder na mesma moeda, mas valeram os clientes que se encontravam no interior do café para os segurarem.

O gerente mandou o empregado para dentro e, depois de ter falado mais um pouco com o cliente, voltou também para o seu posto e o homem do fato cinzento ficou por ali sozinho, de pé, a cirandar, ainda irritado. Porém, passado um pouco, sentou se de novo no mesmo lugar e pediu um novo café em chávena escaldada, tendo o cuidado de acrescentar para a empregada que entretanto substituíra o primeiro (este estava agora atrás do balcão a limpar copos):

‒ Este já está pago!

Margarida assistiu a toda esta cena pregada ao seu lugar. Poucos minutos depois, Mário chegou:

‒ Desculpa o atraso, querida.

Beijaram-se e Margarida disse:

‒ Já foste castigado pelo atraso: perdeste uma cena que não se vê todos os dias.

‒ O quê?

Margarida contou então abreviadamente o que acabara de presenciar.

‒ E dos chineses, nem sinal… – concluiu no final da história.

Mário não reagiu; disse apenas:

‒ Margarida, precisamos de conversar.

Ao mesmo tempo, Miguel acordava estremunhado no hospital:

‒ Não! Outra vez o mesmo sonho!

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

24

- A Margarida esteve cá, ontem... – disse Miguel a Ricardo.

- Eu sei. Cruzei-me com ela, à saída. Ainda tentei que ela não viesse ver-te, mas foi em vão. – respondeu-lhe Ricardo, tentando não deixar transparecer que sabia mais do que dizia.

Mandei-a embora. Depois fiquei a pensar se deveria tê-lo feito assim, ou não. Mas a raiva foi tanta, que nem sequer falar a deixei.

- Então não sabes o que ela tinha para te dizer???

- Não, mas também já não importa. Quero-a fora da minha vida. Acabou o reinado da Margarida em mim.

- Miguel... Eu tenho de contar-te uma coisa. A Margarida esteve comigo hoje de manhã. Não, não digas nada e deixa-me falar, antes que perca a coragem. – disse-lhe Ricardo de uma só assentada, como se as palavras fossem fugir-lhe no instante seguinte. E prosseguiu. – Ela disse que te ama, que está arrependida e que veio aqui para te pedir que esperasses por ela até o bebé nascer. Disse que se envolveu com o outro por orgulho ferido, porque a tinhas mandado embora, e que quando se deu conta já estava irremediavelmente ligada a um homem que não amava.

Miguel ficou em silêncio e Ricardo olhou-o interrogativamente. Conhecia bem o amigo, mas quando o assunto era “Margarida” sabia que podia contar com qualquer tipo de reacção.

- Sabes, Ricardo. Eu amo a Margarida. Mas o nosso tempo passou. Eu mandei-a embora porque não estava feliz ao lado dela, e ela seguiu a vida dela. Fez as escolhas dela. Está grávida. Vai ter um filho de outro homem. Sabes o que é que ela me dizia quando estávamos juntos? Que se um dia fosse Mãe que não se importava, mas que não era uma coisa que desejasse muito. Mas, meses depois de termos acabado, além de um novo namorado, estava grávida. Eu desesperei. Achei que o meu mundo ia desmoronar-se e que a minha vida tinha acabado. Só que depois tive o acidente, e tudo mudou. Estou todo partido, mas agora, passados uns dias, consigo perceber que poderia ter sido bem mais grave do que umas fracturas e uns dias numa cama de Hospital. Este acidente mudou-me. Ainda não sei explicar bem como, mas o porquê é evidente. A vida está a dar-me a oportunidade de a viver de verdade, novamente. E não a vou desperdiçar. Sempre fui um tipo alegre e bem disposto, e desde que as coisas com a Margarida azedaram, a minha alegria foi-se. E ontem, pela primeira vez, senti a minha alegria de volta, quando percebi que estou vivo e que daqui a uns tempos este acidente já não será mais do que passado, tal como a Margarida já é. Tenho pena que ela tenha percebido que me ama tarde demais. Eu agora só quero ficar bem e retomar a minha vida. Talvez um dia seja capaz de voltar a amar outra mulher. Mas, para já, só quero paz e descanso. Tenho de pensar em mim. Acabou.

Naquele momento Ricardo percebeu que qualquer coisa que dissesse seria inútil. Afinal ainda conhecia bem o amigo. Sabia que Miguel amava Margarida, e havia percebido que ela também o amava. Mas, também sabia que Miguel jamais seria capaz de voltar a viver aquele amor. As feridas eram profundas demais, e as mágoas eram imensas. Apesar de se amarem, aqueles dois jamais poderiam ser felizes juntos. Essa ideia entristeceu-o. E apenas um pensamento o animou: Miguel não havia dito que não queria voltar a amar. E isso era muito importante. Isso dava-lhe a certeza de que Miguel, um dia, voltaria a ser feliz.

- Sabes Miguel, quando a Margarida saiu lá de casa, hoje de manhã, eu fiquei sem saber se haveria de contar-te acerca da nossa conversa, ou não. Mas percebi que tinha de te contar. E vejo que foi o melhor que fiz. Se realmente é essa a tua decisão, ao menos que seja tomada sabendo tu de toda a verdade.

- Obrigado, Ricardo. A minha decisão está tomada. Quero que a minha vida ande para a frente, e isso só vai acontecer longe da Margarida.

Ricardo assentiu com um ténue gesto com a cabeça. Sabia que, naquele momento, o silêncio era a melhor via. Estaria ali para tudo o que o amigo precisasse, como sempre havia estado.

De repente, olhou para o relógio e percebeu que eram horas de ir embora. Despediu-se de Miguel e regressou à empresa.

A conversa com Miguel continuou a passear-lhe na mente o resto da tarde. Sentia uma admiração enorme pelo amigo. Apesar de amar aquela mulher, Miguel sabia que com ela jamais poderia ser feliz de verdade e, por isso, havia preferido abdicar dela e do amor que ela dizia sentir.

Fechou os olhos e, nesse instante, recordou Tomás. Já sabia quem o fazia lembrar. Mas era impossível. Eles nem se conheciam. Relembrou o rosto de Carla, o seu sorriso, o toque da sua pele, o calor do seu abraço, o cheiro do seu cabelo, e, naquele momento, sentiu saudades dela. Mas tinha de esperar. Sexta jantariam, e teria de aguardar pacientemente pela sua chegada.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

23

Depois da conversa com Margarida, Ricardo sentia-se vazio de tudo o que poderia, eventualmente, sentir. Já tinha passado a conversa em revista vezes sem conta. Não havia conseguido concentrar-se durante toda a manhã, por causa do que tinha ouvido.

Antes das 8hs Margarida tocara à campainha de sua casa. Depois de a fazer entrar, sentaram-se os dois na sala, e ela começou a falar. Disse-lhe que estava arrependida e que a conversa que haviam tido a tinha feito perceber que amava Miguel. Contou-lhe, também, que havia sido esse o motivo da sua visita a Miguel no Hospital, mas que Miguel lhe havia fechado a porta da sua vida na cara, mandando-a embora, sem dó nem piedade. No fim as palavras haviam ficado embargadas e as lágrimas caiam rebeldemente pelo seu rosto.

Nunca imaginara que seria aquilo que Margarida teria para lhe dizer. Tinha percebido nas suas palavras, mais ainda nos seus silêncios, que Margarida amava Miguel de verdade. Mas, e se bem conhecia o amigo, se ele tinha colocado um ponto final naquela história pedindo-lhe que saísse da sua vida, já não havia retorno possível. Podia ser muito difícil para Miguel tomar decisões e desatar laços, mas sabia que quando o fazia era baseado em decisões sólidas e definitivas. Tinha ficado com pena de Margarida, porque havia percebido que ela amava Miguel. Queria poder ajudá-la. Mas sabia que tudo o que fizesse seria inútil. Quando Miguel tomava uma decisão, nada o fazia mudar de ideias. E duvidava que Margarida conseguisse.

“-Espera que ele saia do Hospital, que esteja completamente recuperado, e volta a tentar. É o único conselho que posso dar-te, Margarida!” – dissera-lhe Ricardo, numa tentativa vã de lhe dar alguma esperança. Esperança esta que sabia ser inútil e falsa. Mas era a única coisa que podia fazer.

Precisava de ver Miguel. Só que teria de esperar até à hora da visita. Não queria contar ao amigo a conversa que havia tido com Margarida. Iria ouvi-lo e, mediante o que ele lhe dissesse, logo decidiria o que fazer com as revelações de Margarida.

Perdido nestes pensamento, Ricardo nem deu pelo toque inicial do telemóvel. Ao ver o nome de Carla a piscar no visor, sentir uma calma súbita.

- Olá Carla! Ainda bem que ligou. Estava a precisar de um pouco de ânimo, e falar consigo é sempre uma coisa boa! – disse Ricardo, tentando ser galanteador.

- Olá Ricardo! Estou a ligar-lhe para lhe agradecer! Ontem fiquei desorientada com a febre do Tomás. Se não fosse o seu primo, eu teria ficado ainda mais nervosa, porque hoje de manhã, quando telefonei para o Pediatra do Tomás descobri que ele está fora do país até ao final da semana.

- Não tem de agradecer. Voltaria a fazer tudo outra vez. Apesar de ter tomado o rumo que tomou, a nossa noite deixou-me com vontade de passar mais tempo consigo. Mas diga-me, como está o Tomás?

- Está melhor, obrigada!... Ricardo, ontem, antes de se ir embora... Queria agradecer-lhe pelo que não aconteceu... Eu estava frágil demais... – disse-lhe Carla, num tom envergonhado.

- Não agradeça... Só eu sei como tive de me controlar. Não vou mentir-lhe, a vontade de pousar os meus lábios nos seus era muito forte, mas jamais me aproveitaria das circunstâncias.

- Obrigada de qualquer maneira.

- Vá, se volta a agradecer zango-me consigo.

- Queria retribuir-lhe a sua disponibilidade de ontem com um convite para jantar cá em casa. O Tomás perguntou-me quando é que eu convidava o Sr. da cara simpática para vir jantar connosco. Mas disse que tinha de ser no dia em que ele vai mais tarde para a cama, por isso o convite é para sexta ou sábado. Deixo-o escolher.

- Por mim, pode ser na sexta. Mas... Isso quer dizer que só volto a vê-la na sexta??? – perguntou Ricardo, já num tom mais descontraído e brincalhão.

- Sim, voltamos a ver-nos na sexta. Vou dedicar o resto da semana a mimar o meu Menino, que ainda não está recuperado.

- É justo! Então ficamos combinados para sexta. Às 20hs em sua casa?

- Sim, às 20hs em minha casa. Até lá!

- Combinado, então. Lá estarei. E, Carla... Adorei aquele abraço...

- Até sexta, Ricardo!

Depois de Carla desligar o telefone, Ricardo voltou a pensar em Tomás. Aquele menino parecia-lhe familiar, só não sabia nem como nem porquê. Mas haveria de descobrir.

Quando se deu conta das horas, percebeu que eram horas de ir almoçar. Quando regressasse do almoço, ainda tinha umas chamadas aborrecidas para fazer e, depois, iria visitar Miguel ao Hospital. Sentiu um arrepio só de pensar na conversa com o amigo. E, pela primeira vez, Ricardo teve receio de não saber o que dizer a Miguel.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

22

Ricardo olhou-a e percebeu que algo a incomodava. Era como se quisesse dizer alguma coisa, mas não soubesse como o fazer. No entanto, quando percebeu que Ricardo a olhava com ar interrogativo, Carla sorriu. Era um facto que queria saber de Miguel, mas, ao mesmo tempo, não queria estragar o momento a falar de alguém que iria, mais cedo ou mais tarde, provocar outra alteração significativa na sua vida.

- Sabe, Ricardo, tenho pena do seu amigo e do que lhe aconteceu. Mas parece-me que quem não está bem é o Ricardo. Bastou-me olhar para si para o perceber. Não me pergunte porquê, mas percebi-o. E aquele telefonema de há pouco acabou consigo... Se quiser ir embora, eu percebo. – disse Carla, sem pensar bem no que estava a dizer.

Ricardo estendeu a sua mão por cima da mesa e segurou a de Carla, dizendo-lhe em seguida:

- Não Carla, vamos ficar mais um pouco. É verdade que não estou a sentir-me muito bem. Foi o acidente do meu amigo, provocado pelo facto de a ex-namorada dele estar grávida de outro. São as discussões com a minha ex-namorada que, apesar de ter sido ela a acabar tudo, continua a tentar controlar a minha vida. É o trabalho e o peso de ter de assumir um negócio de família que se revelou de uma dimensão bem maior do que eu imaginava. E é a falta de tempo para mim, e para ter uma vida. – retorquiu Ricardo, de uma vez só.

Carla sentiu o calor da mão de Ricardo pousada sobre a sua e deixou-se ficar. A mão de Ricardo era suave e quente. Mas o contacto foi subitamente interrompido pelo som estridente de um telemóvel. Desta vez era o de Carla que tocava freneticamente dentro da mala. Quando viu que o número que piscava no visor era o de sua casa apressou-se a atender.

- Sim? Elisa? Está tudo bem com o Tomás? – Perguntou Carla assim que atendeu a chamada.

- O menino Tomás está cheio de febre, e o medicamento que o médico receitou para estas febres do menino não fez efeito. Já é tarde e eu não sabia o que fazer. – respondeu-lhe Elisa com um tom claramente assustado.

- Eu vou já para casa, não se preocupe. – respondeu Carla, desligando o telemóvel.

- O que se passa, Carla? – perguntou-lhe Ricardo, num tom preocupado.

- O meu Filho está a arder em febre. Tenho de ir para casa. Desculpe, Ricardo. Combinamos qualquer coisa noutro dia.

- Eu vou consigo. E nem vale a pena dizer que não. Não vou deixá-la sozinha neste momento. Vamos no meu carro e eu depois arranjo alguém que venha buscar o seu. Não está em condições de conduzir. – disse Ricardo peremptoriamente.

Sem reclamar, Carla aceitou a disponibilidade de Ricardo e depois deste pagar a conta, dirigiram-se ao seu carro.

Num instante chegaram ao destino. Mas entraram em casa de Carla, esta dirigiu-se ao quarto do Filho, que ardia em febre. Ricardo seguiu-a, entrando depois dela no quarto de Tomás. Ao olhar o menino, Ricardo ficou com a sensação de já o ter visto nalgum lugar. Só não sabia de onde.

Carla, desesperada por não conseguir baixar a febre do Filho de forma alguma, resolvera chamar um médico, e Ricardo lembrara-se de telefonar ao seu Primo Lourenço, que era médico. Em menos de meia hora Lourenço estava a entrar em casa de Carla para observar Tomás. Depois de examinar o menino, Lourenço prescreveu alguns medicamentos que precisava de ser administrados o mais rapidamente possível.

Ricardo deixou a casa de Carla com Lourenço, para irem buscar o carro de Carla e para, no caminho, procurarem uma farmácia de serviço. Pouco depois já Tomás tinha tomado os medicamentos. Depois de esperarem a hora indicada pelo médico para que a febre começasse a baixar, o termómetro mostrou que a febre começava, efectivamente, a ceder.

Com a descida da febre, Tomás acalmou e acabou por adormecer. Só depois de ter a certeza de que o Filho dormir é que Carla deixou o seu quarto, acompanhada por Ricardo. Dirigiram-se para a sala, e já aí, Carla não aguentou a pressão e libertou as lágrimas que há horas lhe queimavam os olhos. Ricardo envolveu-a nos seus braços com suavidade e acalmou-a até que as lágrimas cessassem.

No momento em que as lágrimas de Carla começaram a secar, olharam-se de uma forma muito intensa e terna. Por breves instantes Carla julgou que Ricardo se preparava para a beijar. Mas, e contra todas as expectativas, Ricardo apenas encostou os seus lábios na testa de Carla, e voltou a deixá-la descansar a cabeça no seu ombro.

Nem Carla nem Ricardo estavam à espera que qualquer uma daquelas coisas acontecesse. Quem diria que um simples café numa esplanada do Cubo se transformasse no que se transformou. Carla nunca imaginaria Ricardo a ter aquele trabalho todo por sua causa, muito menos por causa de Tomás. E Ricardo jamais se imaginara a dar-se a todo aquele trabalho por causa de uma mulher que ainda mal conhecia, e por causa do filho dela. No entanto, a verdade, é que ambos sentiam que tudo aquilo fazia muito sentido, mesmo que não soubessem nem como nem porquê.

Despediram-se passado algum tempo, e Ricardo prometeu ligar no dia seguinte para saber como estavam Mãe e Filho. Ao chegar ao carro voltou a pensar em Tomás. Aquele menino era-lhe demasiado familiar. Mas como??? Não percebia, mas sabia que iria acabar por descobrir.

De repente lembrou-se do telefonema de Margarida. E, intrigado, pensou que no dia seguinte saberia o que ela tinha para lhe dizer.

Esquecendo tudo, por breves instantes, ligou o carro e foi para casa. Estava mesmo a precisar de descansar.