quinta-feira, 31 de maio de 2007

4

- Bom dia Menina Carla! Como está? – perguntou a secretária meio atrapalhada quando viu Carla sair disparada do elevador em direcção à porta do seu gabinete.

- Bom dia. – respondeu Carla entre dentes entrando de seguida na sua sala, batendo a porta.

Que bela maneira de começar o dia. Já não bastava ter de ir para uma empresa da qual não percebia nada e ter de aprender a geri-la o mais rapidamente possível. Tinha de acontecer-lhe aquilo. Carla sentia-se furiosa e esgotada, e ainda eram só 10hs da manhã.

Tinha acabado de deixar Tomás no Colégio e dirigia-se já para a empresa, quando um carro chocou contra o seu. Nem se apercebeu da presença do outro carro até ao momento que este lhe bateu. Seria suposto o outro condutor ter parado no semáforo encarnado, mas assim não foi. E o acidente tinha acontecido. Ficara com a porta traseira do lado direito toda metida dentro. O seu primeiro pensamento foi para Tomás. Ainda bem que o acidente se deu quando o menino já estava no Colégio, se não nem queria imaginar o que poderia ter acontecido.

Apesar da irresponsabilidade de não ter parado num semáforo encarnado, o outro condutor havia sido impecável. Fizeram logo ali a declaração amigável e ele deu-lhe todos os seus dados, incluindo os números do Bilhete de Identidade e da Carta de Condução, bem como os números de telemóvel e do escritório (que confirmou no cartão que ele lhe deu). Mesmo assim, e não obstante toda a simpatia daquele condutor irresponsável, não tinha ainda conseguido recompor-se do susto e pensar com o discernimento devido. A única coisa que tinha conseguido fazer havia sido telefonar ao Pai e pedir-lhe que fosse buscar-lhe o carro para levar à oficina de um seu amigo para reparar. Entretanto teria de tratar do aluguer de um carro. Sabia perfeitamente bem que se estivesse à espera de que as Companhias de Seguros se entendessem (por mais que o outro condutor se tivesse logo dado como culpado), levaria imenso tempo a ter o carro devidamente reparado. Isto já para não falar do carro de substituição que ainda demoraria a ser-lhe disponibilizado. Mandar o carro para uma oficina e alugar outro enquanto o seu não estava pronto seria, sem dúvida alguma, a melhor solução.

Todavia o seu problema maior era a empresa. Tinha de a gerir e não fazia ideia como. Sabia que mais tarde ou mais cedo o Pai iria ajudá-la, assumindo de novo o seu cargo como Presidente do Conselho de Administração, e dando-lhe tempo para se preparar para, no futuro, assumir, então, tal posição. A morte da Mãe e dos Avós fê-la perceber que tinha ainda mais responsabilidades do que aquelas que já eram suas. Escolher o curso de Biologia tinha sido um erro, e agora percebia-o perfeitamente. Deveria ter escolhido Gestão, como o Pai sempre sugeriu. Mas o seu sonho era ser Médica, e quando Tomás nasceu teve de redefinir prioridades e objectivos. Queria ser uma Mãe presente e ser Médica iria coarctar-lhe, em muitas coisas, essa possibilidade. Era uma profissão demasiado exigente para uma Mãe tão nova. No entanto, naquele momento, percebia que a sua segunda opção deveria ter sido Gestão. Mas como não podia voltar atrás, iria terminar o curso de Biologia e iria aprender a gerir a empresa in loco. Não havia outra solução.

Respirou fundo, pediu um café e uma água à secretária e preparou-se para a sua primeira reunião como Presidente do Conselho de Administração. Pelo menos até o Pai voltar seria “forçada” a ocupar esse cargo.

A manhã passou a correr, e perto da hora de almoço recebeu uma chamada.

- Menina Carla, tenho em linha o Dr. Ricardo Oliveira Cardoso. O assunto é o acidente. Posso passar? – perguntou a secretária, já mais descontraída depois de Carla lhe ter pedido desculpa pela forma rude como havia batido com a porta do gabinete mesmo nos seus ouvidos, logo de manhã.

- Pode passar, sim. Obrigada, Amélia. – disse Carla num tom educado e cordial. Ainda não sabia muito bem como lidar com o pessoal da empresa. Afinal Amélia começara a sua carreira como secretária do Presidente do Conselho de Administração quando o seu Avô ainda ocupava o cargo, passando a ser secretária do seu Pai há cerca de 6 anos.

- Diga-me que já está recuperada do susto de hoje cedo. Não me perdoaria se ainda não se tivesse recomposto. Um rosto bonito como o seu merece ostentar sempre um sorriso! – disse Ricardo assim que Carla atendeu a chamada.

“Mau”, pensou Carla, “querem ver que além de desastrado e distraído a conduzir, este também tem a mania que é engatatão? Vamos lá ver como isto corre. Era só o que me faltava!”

- Fique descansado que o susto já passou, sim. Mas deixe-me que lhe diga que é muito distraído a conduzir, porque não reparar que a luz do sinal está encarnada é distracção a mais. – disse Carla, pensando simultaneamente que “ou estão é mesmo daltónico e ainda não percebeu”.

- Tem toda a razão. Vinha mesmo distraído e já um pouco arreliado. Mas valeu-me, ao menos, ter tido um acidente com uma mulher bonita. – retorquiu Ricardo, não querendo deixar de lançar, mais uma vez, o seu charme natural a Carla.

- Estou a ver que gosta de galantear as mulheres. Uma coisa é certa, e fiquei completamente convencida disso depois do nosso acidente: conduzir no Porto é muito pior do que em Lisboa. Foi o meu primeiro acidente em 5 anos de carta, durante os quais conduzi sempre na cidade de Lisboa, e a larga maioria das vezes em horas de ponta. – o tom de voz de Carla era agora um misto de irritado com jocoso. “Este tipo tem mesmo a mania que é um Don Juan”, pensou.

- Não queria, de modo algum, ofendê-la com os meus galanteios. Mas a verdade é que de facto acho que é uma mulher muito bonita e queria convidá-la para jantar e, discutirmos, obviamente, os custos que terá até que as nossas Companhias de Seguro resolvam a questão. O que me diz hoje às 21hs no Cafeína? Eu trato das reservas.

“Desta é que é que ela não estava à espera”, pensou Ricardo.

- Se reformular o convite para sexta-feira, pode ser que eu aceite. Antes disso será completamente impossível.

- Que seja sexta-feira, então. Por mim está tudo bem. Então ficamos combinados para as 21hs no Cafeína?

- Combinado. Tenho o seu número. Se houver qualquer alteração ligo e aviso-o. Tenha uma boa semana, Dr...

- Ricardo, por favor. Esses formalismos não são necessários, não acha Carla?

- Até sexta! – disse Carla desligando o telefone.

Aquele tipo tinha uma lábia descomunal. Mas a verdade é que aqueles elogios tinham feito muito bem ao ego de Carla. Desde que Tomás nascera que fazia jus ao epíteto que lhe havia sido atribuído nos tempos do secundário e que se comportava como uma autêntica “Freira”. No entanto deu consigo a pensar que aquele nome não lhe era completamente desconhecido. “Ricardo Oliveira Cardoso... Podia jurar que já ouvi este nome antes”, pensou Carla, mas como não conseguia recordar-se de onde reconhecia o nome, simplesmente, atirou-o para um qualquer canto esquecido da sua memória. Sexta-feira voltaria a pensar nele. Ainda era só segunda-feira, e parecia que a semana estava quase a chegar ao fim, tal era o cansaço que Carla sentia.

terça-feira, 29 de maio de 2007

3

Enquanto Carla mergulhava nestes pensamentos, Miguel saía do bar em passo rápido e de ar carrancudo. Nunca esperara aquilo do seu melhor amigo!

Ricardo, confidente de Miguel desde que ambos se conheceram no Colégio, há dez anos atrás, fora logo o primeiro a falar, mal Carla se afastara:

- Mas vamos lá a saber quem é aquela deusa que estava aqui a falar contigo antes de nós chegarmos? Ficas sempre com o bom material para ti e não apresentas aos amigos! - lamentou-se no meio da galhofa.

Se soubesse como as coisas iam correr a seguir, Miguel teria evitado o assunto, mas, como não sabia, limitara-se a rir e a afagar a sua cabeleira loira antes de responder, bem-disposto:

- É uma história do arco da velha; nem sei se vos diga, se vos conte.

- Oh pá, já sabes que nós adoramos uma boa história, e quanto mais picante melhor! - retorquira Ricardo.

- Então lá vai. Esta rapariga andou comigo uns dois ou três anos no Colégio, para aí entre o nono e o décimo primeiro. Tu de certeza que te lembras dela, apesar de não seres da nossa turma - acrescentara, virando-se para Ricardo. - O pessoal chamava-lhe "a Freira", lembras-te?

- O quê!? Esta era a Freira!? Eu não a vi bem, porque ela levantou-se logo e nem deu cavaco, mas é impossível que esta fosse a Freira. Basta ver-se que a Freira nunca poria os pés neste antro de perdição! - Ricardo revelara-se mais incrédulo do que Miguel, se tal era possível.

Perante o ar confuso dalguns dos presentes, que não tinham andado no Colégio e não estavam a perceber nada da conversa que se ia desenrolando entre Ricardo e Miguel, este achara por bem esclarecer:

- O pessoal chamava-lhe "a Freira" porque ela, além de ser feia como a noite, tinha mesmo pinta disso. Era a forma como se vestia, como caminhava, eu sei lá! Era uma personagem daquelas que uma pessoa pensa que só há nos livros... Depois saiu e ninguém soube mais dela (nem procurou saber, a bem dizer). Hoje estava eu aqui à vossa espera e vem ela falar comigo. Eu nem a reconheci. E, por falar nisso, deixaram-me para aqui plantado, não foi?

- Desculpa, meu caro. Eu ainda tentei avisar-te, mas não atendeste o telemóvel. O pessoal resolveu encontrar-se no café do Mauro antes de vir para aqui, para vermos o jogo. Lá ganhámos... Mas conta mais coisas. Então ela viu-te aqui e não só ainda se lembrava de ti como veio meter conversa? Cheira-me que estamos perante um caso de amor, e já não é de hoje. Que é que vocês acham, rapazes?

Risadas de assentimento.

- Amor!? Ela odiava-me porque eu era melhor aluno do que ela e porque fui eu quem lhe pôs a alcunha! A miúda simplesmente não podia ver-me à frente! É agora amor...

- Confirma-se! O amor não correspondido degenera frequentemente em ódio.

- Oh Ricardo, pára lá de brincar com coisas sérias, está bem? A miúda foi minha colega de turma no Colégio durante um par de anos, hoje viu-me aqui sozinho, reconheceu-me e veio ter comigo, falou um bocadinho, foi embora e pronto. Se te tivesse visto a ti e se lembrasse de que eras da outra turma, também tinha vindo falar contigo. É sempre bom reencontrar conhecidos.

- Eu é que digo oh Miguel! Não me digas que nem ficaste com o número dela!?

- Para quê?

- Para quê!? Esqueceste a regra fundamental!? Sempre ficar com o número duma brasa; nunca sabes quando vais precisar dele! Vá lá, ela ainda está ali a pagar para sair. Chama-a outra vez e pede-lhe o número!

- Pedir-lhe o número para quê? Já me chega a Margarida, não?

- A Margarida... Quando é que metes na tua cabeça que essa história acabou? Mas olha, se não queres para ti, pede para nós! Aquilo não é material de se deixar passar assim sem tomar uma atitude!

- Oh Ricardo, mas tu estás-te a passar!? Eu nunca falei com a miúda enquanto andámos juntos no Colégio, vou lá agora dar uma de garanhão para cima dela! E tu também devias ter vergonha. Na altura era a Freira e rias-te dela nas costas; agora, só porque ganhou um corpinho jeitoso já estás para aí a babar!?

Mas de nada valera a sua indignação. Com um "se não pedes tu, peço eu", Ricardo rabiscara um guardanapo, chamara o empregado e segredara-lhe qualquer coisa. Depois de este se afastar o suficiente, Ricardo virara-se para Miguel e dissera-lhe:

- Parabéns, acabaste de convidar a tua amiga boazona para um café. A ver vamos se ela não te telefona.

Miguel ficara boquiaberto com a atitude de Ricardo; nunca esperara isso do seu melhor amigo. Quando tentara chamar o empregado de volta, tudo o que vira fora ele a entregar o bilhete a Carla, já à porta do bar. Tarde demais.

- Mas ouve lá, tu estás mesmo a passar-te, não? Agora o que é que eu faço?

- Esperas o telefonema dela e vais sair com ela. Se não quiseres, vou eu no teu lugar.

- Oh Ricardo, deixa de ser infantil, sim? As coisas não funcionam assim! Olha, eu vou-me mas é embora, que já me estragaste a noite!

- Miguel, espera!

De nada valera. Depois de pagar, Miguel saiu do bar em passo rápido e de ar carrancudo. Nunca esperara aquilo do seu melhor amigo!

"E agora o que é que eu faço da minha vida?", pensava enquanto caminhava para o carro." Pode ser que ela não telefone. Sim, ela odeia-me; não vai telefonar, de certeza. Deve é estar indignadíssima com a minha lata, e eu sem culpa nenhuma. Mas o Ricardo paga-mas, ai paga, paga!"

Deitou uma mirada rápida ao espelho retrovisor, afagou o cabelo e arrancou, derrapando na gravilha do parque de estacionamento.

Tomás suspirou mais profundamente debaixo dos lençóis.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

2

Ainda não conseguia acreditar na coragem que havia tido. Passados sete anos tinha reencontrado Miguel, o rapaz convencido e irritante que, durante o secundário, lhe havia dado a alcunha de “a Freira”; a pessoa que havia mudado a sua vida para sempre. Carla tinha plena consciência de que na altura do secundário era um verdadeiro patinho feio. Mas o tempo tinha passado, e Carla era agora uma mulher deslumbrante e desejável. No entanto, e mesmo com toda a sua auto-estima fortalecida, Carla nunca imaginara ter coragem de abordar Miguel daquela forma. Ainda para mais no meio de um bar com tanta gente a olhar.

Fora salva pela chegada dos amigos de Miguel, e agora, no caminho de casa, recordava o último momento daquela noite, no bar. Parecia uma cena saída de um filme. Receber aquele bilhete das mãos do Barman tinha tido nela o efeito de um choque eléctrico. Um número de telemóvel, um nome, e um “Liga-me para tomarmos um café. Quero saber mais de ti! Um beijo, Miguel”. Estava tentada, mas não sabia se devia. Adorava um bom flirt, e a maneira como Miguel havia olhado para ela deixava transparecer um interesse que ia além da simples curiosidade sobre o passado. Mas não poderia flirtar com Miguel. Havia algo muito mais importante em jogo. E jamais poderia esquecer-se disso. Guardou o bilhete num compartimento da carteira, disposta a não pensar nele durante uns dias. Depois logo se resolveria.

Chegou a casa e abriu a porta devagarinho, para não fazer barulho nem acordar Tomás. Pensou nele e dirigiu-se ao quarto para ver se já dormia. Parecia um anjinho. O cabelo loiro e encaracolado, a pele branca, os olhos verdes, o mesmo sorriso, a mesma lábia e o mesmo jeito com as mulheres que o Pai. Já tinha 6 anos, e estava tão bonito. Tinha de ter muito cuidado.

Recordou, mais uma vez, o encontro com Miguel. Recuou no tempo e voltou ao décimo primeiro ano, àquela festa de Carnaval que mudara a sua vida para sempre. Apenas uma noite chegou para destruir o sonho da sua vida e dar-lhe o maior tesouro de todos. Aquela era a primeira festa do Colégio que seria organizada fora das suas “muralhas”, como gostavam de dizer. O Director tinha acedido ao pedido de fazer a festa numa discoteca da moda, na altura, e entre os alunos a expectativa era grande. A última coisa que se lembra, daquela noite, foi de ouvi-lo chamá-la – “Carla”. Era a primeira vez que ele o pronunciava. Sempre havia alimentado um amor platónico por ele, mas nunca imaginara que um dia ele olharia para ela daquela forma. Foi ter com ele e saíram do meio da confusão. Os momentos que se seguiram foram mágicos, e jamais os esqueceria. Mas o dia seguinte havia sido terrível. Ele não se lembrava de nada do que tinha acontecido, e Carla sentiu-se sozinha e desamparada. No entanto, o pior, viria a acontecer um mês e meio depois. Estava grávida, e não podia contar-lhe porque ele não iria acreditar. Teve o apoio inesperado e surpreendente dos Pais. Saiu imediatamente do Colégio, a meio do ano lectivo, e foi viver para casa de uma Tia em Lisboa. Tinha de sair dali o mais rapidamente possível. Dissera aos Pais que não se lembrava do que havia acontecido, e que não sabia quem era o Pai do bebé. Nunca lhe havia custado tanto mentir aos Pais, mas era a única solução que tinha. Apesar de tudo apoiaram-na ao máximo e quando Tomás nasceu transformou-se no menino dos olhos dos Avós. Com a gravidez e o nascimento do filho tinha abandonado o colégio a meio do décimo primeiro ano, e durante um ano e meio ficara longe dos estudos. Quando voltou a estudar já não se sentia com força para dar o tudo por tudo para entrar em Medicina. Acabara por optar por Biologia, e, naquele momento, estava a pouco mais de um ano de terminar o curso. No entanto, a morte repentina dos Avós Maternos e da Mãe, há três meses, num acidente de viação haviam feito com que Carla tivesse necessidade de deixar para trás a vida em Lisboa, a faculdade, os amigos, e regressar ao Porto para assumir os negócios da Família. A sua Mãe era filha única, assim como Carla, e o seu Pai não se sentia capaz de gerir o património depois da perda brutal e violenta da mulher que amara a vida inteira. Sabia que aquela era uma situação transitória e que, dentro de pouco tempo, se tudo corresse pelo melhor, o Pai iria reassumir as suas funções. Todavia, e naquele momento, cabia-lhe a ela a árdua tarefa de gerir o património da Família. Estava a tentar conseguir transferência da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa para a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

Foi trazida de novo à realidade quando Tomás se remexeu na cama e ficou destapado. Tapou-o e deu-lhe um beijo doce e meigo na testa. Aquele sim era o único e verdadeiro amor da sua vida. Tinha tido alguns namoricos, mas nada de relevante. Nunca tinha apresentado o filho a nenhum namorado. Não queria expô-lo a uma eventual perda. Mas o encontro com Miguel tinha provocado em si um turbilhão de sentimentos contraditórios. E a forma como ele a olhara fizera lembrar aquela noite.

Não queria, nem ia permitir, que Miguel voltasse a virar o seu mundo do avesso. Desta vez não!

terça-feira, 22 de maio de 2007

1

- Não te lembras de mim, pois não?

Miguel remexeu, em vão, as suas memórias em busca dalguma recordação que lhe dissesse quem era a rapariga que agora se encontrava diante de si. Resolveu arriscar um pouco de charme...

- Eu nunca esqueço uma menina bonita, mesmo quando fico uns tempos sem vê-la. Conta-me! Por onde tens andado?

- A sério que sabes quem sou? – a rapariga não parecia totalmente convencida.

Miguel manteve a estratégia evasiva, esperando com isso obter informação que lhe permitisse identificar aquela morena que agora lhe falava no bar como se fossem velhos amigos desencontrados:

- Já te disse que sei perfeitamente quem és. Só não sei é o que tens feito desde a última vez que nos vimos. Já vão uns anitos, mas continuas igual…

- Definitivamente, não te lembras de mim, senão não dizias isso! – o tom de voz da rapariga tornou-se um pouco mais ríspido.

Miguel apercebeu-se da mudança de atitude e reagiu em conformidade:

- Oh querida! Sim, claro que estás diferente em muitas coisas, estás mais mulher, mais elegante, mas dá para perceber quem és. Doutra forma, não me lembraria de ti…

- Ai sim? Então como me chamo?

“Xeque-mate!”, pensou Miguel. “Agora como me safo desta?” Optou por esticar a corda mais um pouco e arriscar.

- Não acredito que estás a duvidar de mim! Se eu digo que me lembro perfeitamente de ti no Colégio! Eras da minha turma e tudo!

A rapariga pareceu acalmar. Um leve sorriso dançou nos seus lábios.

“Acertei! Ela era do Colégio! Mas quem seria? A Joana? Não! A Diana? Também não. A Helena? Definitivamente não! Não faço mesmo ideia…” Miguel continuou ao ataque:

- Agora que já acreditas quando te digo que me lembro perfeitamente de ti, vais contar-me o que tens feito desde a última vez que te pus a vista em cima? Já vai há uns anitos…

- Sete, precisamente.

“Sete!? Espera aí; eu só acabei o décimo segundo há cinco anos, quase seis… Se ela andou no Colégio e já não me vê há sete anos… Quem foi que saiu de lá antes do final? Não pode ser!” Miguel estava boquiaberto: “Esta é a Freira!? Ninguém muda assim tanto!”

- Pois, sete. Tu saíste do Colégio a meio do décimo primeiro, não foi… Carla?

Desta vez, a rapariga abriu-se num sorriso:

- Ainda te lembras mesmo de mim!

“Impossível esquecer uma personagem como tu”, pensou Miguel. “Não imaginava era que pudesses mudar tanto.”

Carla e Miguel eram nesses tempos do secundário os melhores alunos da turma, embora tivessem estilos totalmente diferentes. A Carla era a típica aluna aplicada, solitária, que lia a matéria antes de ir para a aula e ficava no seu canto bebendo as palavras do professor e tirando notas no caderno impecavelmente forrado com papel autocolante, nessa sua letra certinha de menina bem comportada. Era conhecida no Colégio inteiro como “a Freira”. Miguel era o oposto: irreverente, brincalhão, capaz de provocar a algazarra na turma com os seus comentários jocosos a propósito da matéria. Estudava de véspera, depois de jogar uma futebolada com os amigos, mas safava-se sempre, frequentemente melhor do que a estudiosa Carla. Ela nunca lhe perdoara isso, o que sempre azedara as relações entre ambos. De resto, fora Miguel quem inventara o epíteto "a Freira" para apelidar Carla, numa tarde em que esta passava junto ao campo de futebol.

Miguel estava sentado na bancada, cercado de raparigas, como aliás era costume, à espera da vez da sua equipa para jogar e Carla dirigia-se para a entrada da biblioteca do Colégio com os livros das aulas do dia junto ao peito.

- Olha para o ar dela; parece que vai para a missa. Aquela rapariga ainda vai virar freira, oiçam o que eu vos digo!

A gargalhada fora geral e, desde esse dia, o nome pegara. No dia seguinte, já toda a escola se referia a Carla pela alcunha e nunca mais ninguém a chamou pelo nome, excepto nas raras ocasiões em que falavam com ela directamente. Mas Carla sabia da forma como a tratavam nas suas costas e sabia quem fora o autor da brincadeira. Mais um motivo para nunca o perdoar.

Mas agora, naquele bar, Carla parecia tudo menos uma freira. Alta, morena, com longos cabelos negros como o mais negro que se possa imaginar revolteando rebeldes até aos ombros, olhos cor de mel e um porte soberano no seu vestido de cetim vermelho, destacava-se das demais raparigas que tomavam café, conversavam, riam ou dançavam.

- Claro que me lembro! Como podia esquecer a inesquecível Carla? Mas senta-te um pouco e conta-me como tens passado!

Carla aceitou o convite.

- Sento, mas só um bocadinho, que tenho ali uns amigos à espera. Só cá vim cumprimentar-te e perguntar-te se queres juntar-te a nós.

- Obrigado pelo convite, mas combinei encontrar-me aqui com uns amigos. Eu, que costumo andar sempre atrasado, hoje fui o primeiro a chegar e agora estou para aqui à espera. Mas fala-me de ti! Estás a acabar Medicina, suponho?

- Não, estou no último ano de Biologia - uma sombra imperceptível passou no seu olhar. - Não consegui entrar em Medicina.

- Não!? Isso é que foi uma pena; tenho a certeza de que se perdeu uma grande médica. - Miguel sempre soubera que um dos sonhos de Carla fora entrar em Medicina. Aliás, no Colégio correra o boato de que ela tinha saído a meio do décimo primeiro para ir tentar melhorar a média num Externato que, nessa altura, operava verdadeiros milagres nas médias dos seus alunos que queriam ir para Medicina. Ou o boato era falso, ou nem os milagres do Externato salvaram Carla.

- E tu que fazes, actualmente?

- Eu acabei Engenharia Informática no final do ano passado e estou agora a trabalhar numa empresa de componentes informáticos para a indústria aerospacial. Mas quero ver se me lanço por conta própria um dia destes. Tenho aqui umas ideias para um sistema operativo que vai revolucionar o mundo!

O SOM - Sistema Operativo do Miguel -, como ele lhe chamava, à falta de melhor nome, era a menina dos seus olhos desde o terceiro ano da faculdade. Tudo nascera dum projecto opcional da Faculdade para a cadeira de Sistemas Operativos, em que os alunos tinham de idealizar um sistema operativo rudimentar. Miguel inscrevera-se no projecto por curiosidade, mas adorara-o desde o início dos trabalhos, tendo recebido a nota máxima pelo seu trabalho. A partir daí, Miguel decidira continuar a trabalhar para aperfeiçoar o seu projecto, apesar das opiniões desfavoráveis de professores e colegas, que diziam que construir um sistema operativo do nada era uma tarefa impossível de ser realizada por uma só pessoa. Apesar disso, Miguel resolvera dedicar-se a fundo ao seu SOM e os amigos perceberam que não iam conseguir demovê-lo da ideia.

- Como deves imaginar, tenho trabalhado muito: o meu emprego é muito exigente e os tempos livres são passados a programar por conta própria...

- Parece interessantíssimo; e da maneira como falas, vê-se que adoras o que fazes.

- Não trocava por nada deste mundo.

Neste momento, a conversa foi interrompida pela chegada dos amigos de Miguel. Carla levantou-se imediatamente, despediu-se com um aceno e afastou-se.