- Bom dia Menina Carla! Como está? – perguntou a secretária meio atrapalhada quando viu Carla sair disparada do elevador em direcção à porta do seu gabinete.
- Bom dia. – respondeu Carla entre dentes entrando de seguida na sua sala, batendo a porta.
Que bela maneira de começar o dia. Já não bastava ter de ir para uma empresa da qual não percebia nada e ter de aprender a geri-la o mais rapidamente possível. Tinha de acontecer-lhe aquilo. Carla sentia-se furiosa e esgotada, e ainda eram só 10hs da manhã.
Tinha acabado de deixar Tomás no Colégio e dirigia-se já para a empresa, quando um carro chocou contra o seu. Nem se apercebeu da presença do outro carro até ao momento que este lhe bateu. Seria suposto o outro condutor ter parado no semáforo encarnado, mas assim não foi. E o acidente tinha acontecido. Ficara com a porta traseira do lado direito toda metida dentro. O seu primeiro pensamento foi para Tomás. Ainda bem que o acidente se deu quando o menino já estava no Colégio, se não nem queria imaginar o que poderia ter acontecido.
Apesar da irresponsabilidade de não ter parado num semáforo encarnado, o outro condutor havia sido impecável. Fizeram logo ali a declaração amigável e ele deu-lhe todos os seus dados, incluindo os números do Bilhete de Identidade e da Carta de Condução, bem como os números de telemóvel e do escritório (que confirmou no cartão que ele lhe deu). Mesmo assim, e não obstante toda a simpatia daquele condutor irresponsável, não tinha ainda conseguido recompor-se do susto e pensar com o discernimento devido. A única coisa que tinha conseguido fazer havia sido telefonar ao Pai e pedir-lhe que fosse buscar-lhe o carro para levar à oficina de um seu amigo para reparar. Entretanto teria de tratar do aluguer de um carro. Sabia perfeitamente bem que se estivesse à espera de que as Companhias de Seguros se entendessem (por mais que o outro condutor se tivesse logo dado como culpado), levaria imenso tempo a ter o carro devidamente reparado. Isto já para não falar do carro de substituição que ainda demoraria a ser-lhe disponibilizado. Mandar o carro para uma oficina e alugar outro enquanto o seu não estava pronto seria, sem dúvida alguma, a melhor solução.
Todavia o seu problema maior era a empresa. Tinha de a gerir e não fazia ideia como. Sabia que mais tarde ou mais cedo o Pai iria ajudá-la, assumindo de novo o seu cargo como Presidente do Conselho de Administração, e dando-lhe tempo para se preparar para, no futuro, assumir, então, tal posição. A morte da Mãe e dos Avós fê-la perceber que tinha ainda mais responsabilidades do que aquelas que já eram suas. Escolher o curso de Biologia tinha sido um erro, e agora percebia-o perfeitamente. Deveria ter escolhido Gestão, como o Pai sempre sugeriu. Mas o seu sonho era ser Médica, e quando Tomás nasceu teve de redefinir prioridades e objectivos. Queria ser uma Mãe presente e ser Médica iria coarctar-lhe, em muitas coisas, essa possibilidade. Era uma profissão demasiado exigente para uma Mãe tão nova. No entanto, naquele momento, percebia que a sua segunda opção deveria ter sido Gestão. Mas como não podia voltar atrás, iria terminar o curso de Biologia e iria aprender a gerir a empresa in loco. Não havia outra solução.
Respirou fundo, pediu um café e uma água à secretária e preparou-se para a sua primeira reunião como Presidente do Conselho de Administração. Pelo menos até o Pai voltar seria “forçada” a ocupar esse cargo.
A manhã passou a correr, e perto da hora de almoço recebeu uma chamada.
- Menina Carla, tenho em linha o Dr. Ricardo Oliveira Cardoso. O assunto é o acidente. Posso passar? – perguntou a secretária, já mais descontraída depois de Carla lhe ter pedido desculpa pela forma rude como havia batido com a porta do gabinete mesmo nos seus ouvidos, logo de manhã.
- Pode passar, sim. Obrigada, Amélia. – disse Carla num tom educado e cordial. Ainda não sabia muito bem como lidar com o pessoal da empresa. Afinal Amélia começara a sua carreira como secretária do Presidente do Conselho de Administração quando o seu Avô ainda ocupava o cargo, passando a ser secretária do seu Pai há cerca de 6 anos.
- Diga-me que já está recuperada do susto de hoje cedo. Não me perdoaria se ainda não se tivesse recomposto. Um rosto bonito como o seu merece ostentar sempre um sorriso! – disse Ricardo assim que Carla atendeu a chamada.
“Mau”, pensou Carla, “querem ver que além de desastrado e distraído a conduzir, este também tem a mania que é engatatão? Vamos lá ver como isto corre. Era só o que me faltava!”
- Fique descansado que o susto já passou, sim. Mas deixe-me que lhe diga que é muito distraído a conduzir, porque não reparar que a luz do sinal está encarnada é distracção a mais. – disse Carla, pensando simultaneamente que “ou estão é mesmo daltónico e ainda não percebeu”.
- Tem toda a razão. Vinha mesmo distraído e já um pouco arreliado. Mas valeu-me, ao menos, ter tido um acidente com uma mulher bonita. – retorquiu Ricardo, não querendo deixar de lançar, mais uma vez, o seu charme natural a Carla.
- Estou a ver que gosta de galantear as mulheres. Uma coisa é certa, e fiquei completamente convencida disso depois do nosso acidente: conduzir no Porto é muito pior do que em Lisboa. Foi o meu primeiro acidente em 5 anos de carta, durante os quais conduzi sempre na cidade de Lisboa, e a larga maioria das vezes em horas de ponta. – o tom de voz de Carla era agora um misto de irritado com jocoso. “Este tipo tem mesmo a mania que é um Don Juan”, pensou.
- Não queria, de modo algum, ofendê-la com os meus galanteios. Mas a verdade é que de facto acho que é uma mulher muito bonita e queria convidá-la para jantar e, discutirmos, obviamente, os custos que terá até que as nossas Companhias de Seguro resolvam a questão. O que me diz hoje às 21hs no Cafeína? Eu trato das reservas.
“Desta é que é que ela não estava à espera”, pensou Ricardo.
- Se reformular o convite para sexta-feira, pode ser que eu aceite. Antes disso será completamente impossível.
- Que seja sexta-feira, então. Por mim está tudo bem. Então ficamos combinados para as 21hs no Cafeína?
- Combinado. Tenho o seu número. Se houver qualquer alteração ligo e aviso-o. Tenha uma boa semana, Dr...
- Ricardo, por favor. Esses formalismos não são necessários, não acha Carla?
- Até sexta! – disse Carla desligando o telefone.
Aquele tipo tinha uma lábia descomunal. Mas a verdade é que aqueles elogios tinham feito muito bem ao ego de Carla. Desde que Tomás nascera que fazia jus ao epíteto que lhe havia sido atribuído nos tempos do secundário e que se comportava como uma autêntica “Freira”. No entanto deu consigo a pensar que aquele nome não lhe era completamente desconhecido. “Ricardo Oliveira Cardoso... Podia jurar que já ouvi este nome antes”, pensou Carla, mas como não conseguia recordar-se de onde reconhecia o nome, simplesmente, atirou-o para um qualquer canto esquecido da sua memória. Sexta-feira voltaria a pensar nele. Ainda era só segunda-feira, e parecia que a semana estava quase a chegar ao fim, tal era o cansaço que Carla sentia.