terça-feira, 31 de julho de 2007

21

Miguel estava em casa e tinha uma aliança no dedo. A televisão estava ligada e Miguel estava sentado no sofá em frente a ela, mas não estava a ver o que o pequeno ecrã reproduzia. A sua atenção estava voltada para um bebé que brincava ali perto. De repente, Miguel levantou-se e pegou no bebé, que começou a chorar. Sempre que lhe pegava, o bebé chorava, como se quisesse lembrar a Miguel que não era ele o seu pai. Miguel estava farto disso. Estava farto de olhar todos os dias para o bebé e ver na sua cara rosada a do pai, a do homem que engravidara Margarida. Estava farto de ter de lidar com o facto de que Margarida tivera outro homem e que Miguel fora a segunda opção. Todo o ódio que possuía dentro de si se concentrou nesse momento no pequeno bebé. Miguel levou-o até ao quarto de banho, depositou-o na banheira, fechou o ralo e abriu a água fria.

Miguel não sabia se estava acordado ou a dormir; passar o dia deitado numa cama de hospital fazia-o perder a noção do tempo e de si mesmo. Sabia que era noite pela escuridão que lhe entrava pela janela, mas não sabia que horas eram. Soergueu-se e procurou o relógio na gaveta da mesinha de cabeceira: eram quase dez e meia. Agora estava definitivamente acordado. Tinha sido sem dúvida um sonho, ou talvez fosse mais apropriado dizer um pesadelo. A última realidade que tinha por certa era a visita de Margarida.

Margarida… Deixou-se ficar um pouco a rever o que se tinha passado naquele quarto de hospital e arrependeu-se. Quer dizer, não sabia, já não sabia nada de nada. Já não sabia se o que sentia por Margarida era amor ou ódio, ou ódio por não conseguir deixar de amá-la, ou raiva por ela estar bem nos braços doutro homem enquanto ele estava no hospital por causa dela, ou inveja dessoutro homem que lhe roubara o coração e lha roubara de si. Sentia que Margarida era sua, sempre fora e sempre havia de ser, mas já não sabia se a queria.

– Estou tão farto de fazer borradas na minha vida! – murmurou. – Se ao menos soubesse qual é o caminho certo…

Mas não podia saber. Só se pode saber se um caminho leva ao destino desejado depois de percorrê-lo e, na maioria dos casos, esses caminhos são de sentido único; mesmo que o não sejam, o tempo perdido a percorrê-lo e a voltar para trás é irrecuperável. Miguel sabia disso, e isso deixava-o ainda mais confuso. Mandara Margarida embora quando esta viera visitá-lo de tarde num acesso de impulsividade de que entretanto se arrependera, mas o sonho que agora tivera… Perguntou-se a si mesmo como poderia viver ao lado de Margarida olhando diariamente para um filho que não era seu. Como poderia cuidar duma criança que era a lembrança dos momentos mais horríveis da sua vida, em que mais havia sofrido? Mas, por outro lado, Margarida… Lembrou-se da festa de aniversário em que a conhecera, dos passeios de mão dada junto ao mar, do primeiro beijo, dos que se lhe seguiram, de todos os momentos que passaram juntos, dos planos que faziam para o futuro…

Lembrou-se então de Ricardo. Que falta lhe fazia uma conversa com o amigo naquele momento!

Na esplanada, o telemóvel de Ricardo começou a tocar. Pedindo desculpa a Carla, Ricardo pegou nele e viu o número de Margarida a cintilar. “É engraçada a vida”, pensou, “nunca quis ter o número dela gravado no telemóvel, e, por causa disso, acabei por decorá-lo, mas não sei o número do Miguel.” Atendeu:

‒ Diz, Margarida – a voz denotou-lhe o enfado.

‒ Preciso de falar contigo, pessoal e urgentemente – disse-lhe a voz do outro lado.

‒ Pois, mas agora não pode ser, que não estou em casa e estou ocupado. Eu depois ligo-te e combinamos qualquer coisa, pode ser?

‒ Não, não pode. A que horas chegas a casa?

‒ Não sei.

‒ Então amanhã de manhã, antes de saíres para o trabalho, passo por lá.

Ricardo assentiu, suspirando, e despediu-se de Margarida, dirigindo-se em seguida a Carla, em jeito de desculpa:

‒ Há alturas em que tudo parece acontecer em catadupa. Estas duas últimas semanas têm sido de doidos!

Carla aproveitou a deixa para tentar saber um pouco desse amigo hospitalizado – Miguel, porventura:

‒ Pois, compreendo… Disse-me que tinha, inclusivamente, um amigo no hospital… Está melhor?

‒ Sim, saiu da Observação e está agora internado na enfermaria, mas ainda lá vai ficar uns tempos, segundo me disseram os médicos.

‒ É assim tão grave?

‒ Ele saiu com o carro completamente da estrada e caiu por uma ribanceira. Teve muita sorte de não acabar parado em cima da linha de comboio que passava lá perto! Sabe-se lá onde estaria agora, se fosse o caso…

‒ Pois… O Ricardo tem-lo visitado?

‒ Ainda hoje estive com ele; fui lá vê-lo.

Carla estava na dúvida sobre como prosseguir a conversa. Queria saber de Miguel, mas não queria parecer intrometida. Bebeu um gole da sua bebida para pensar no que dizer a seguir.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

20

A reunião com os clientes Franceses tinha corrido bem melhor do que estava à espera. Mas havia qualquer coisa a preocupá-lo. Sabia bem o que era, mas até ao dia seguinte não lhe seria possível saber o que queria. Teria de esperar até à hora da visita de Miguel para falar com o amigo e saber o que tinha acontecido com Margarida.

Só que, por mais que estivesse preocupado com o amigo, havia outra pessoa que ocupava o seu pensamento – Carla. Não conseguia parar de pensar nela. E, contra tudo o que era normal em si, resolvera telefonar-lhe. Precisava de ouvir a sua voz, para poder recordar o movimento dos seus lábios em cada palavra proferida. Precisava de ouvir a sua voz, para fechar os olhos e vê-la sorrir. Precisava de ouvir a sua voz, apenas porque sabia que o seu tom meigo e pausado iria ter o poder de o fazer sentir-se melhor.

Procurou o número de Carla na lista telefónica no telemóvel e, ao encontrá-lo, hesitou. “O que é que se passa comigo?”, indagou-se, “Pareço um miúdo de 15 anos que não sabe falar com uma rapariga...”. Respirou fundo e carregou no botãozinho verde. Chamou, chamou, chamou, e quando estava mesmo a desistir, Carla atendeu o telemóvel.

- Olá Ricardo, como está? – perguntou Carla, num tom entre o surpreendido e o assustado.

- Estou mais ou menos, confesso. Liguei-lhe porque precisava de ouvir a sua voz. Sei que é estranho e precipitado dizer estas coisas, mas a verdade é que não me sentia tão bem com alguém como senti consigo. Parece que a Carla é capaz de me entender, mesmo quando não digo muita coisa. E sinto que sente o mesmo que eu. Sei que só estivemos juntos uma vez, mas deixe-me convidá-la para jantar. Por favor... – disse Ricardo de uma só vez, como se fosse perder a coragem no momento imediatamente a seguir.

Carla estranhou aquele impulso, mas alguma coisa na voz dele denotava sinceridade. A verdade era que também ela se sentia muito bem ao lado de Ricardo. Aquele homem, que tinha passado uma noite inteira a ouvi-la falar de Tomás, não olhava para ela de lado pelo facto de ter sido Mãe tão jovem. Não a julgava por ser Mãe solteira. Tão pouco havia tentado dar-lhe lições de moral pelo que quer que fosse. E há muito tempo que não encontrava ninguém assim. No entanto, sentia que tudo isso podia desvanecer-se como se de uma nuvem de fumo se tratasse. Ricardo havia sido, nos tempos de Colégio, o melhor amigo de Miguel. Não sabia que relação manteriam, ainda, mas a verdade é que quando Ricardo soubesse quem ela era as coisas mudariam, com toda a certeza. Mesmo assim, resolveu que iria arriscar um pouco.

- Jantar não posso. Prometi ao Tomás que jantava com ele hoje. Mas às 21h30 são horas de o meu Menino ir dormir. Podemos encontrar-nos depois, para conversar um pouco. O que diz? – propôs-lhe Carla.

- Claro que sim. Encontramo-nos nalgum lugar, ou posso ir buscá-la a casa?

- É melhor encontrarmo-nos. Há um lugar na cidade que eu adoro, e onde ainda não voltei desde que regressei ao Porto. Se não se importar, gostava de ir até à Praça do Cubo.

- No Cubo será, então. Às 22hs? E em que esplanada?

- Às 22hs, sim. Na esplanada que tem o melhor chocolate quente. Tenho a certeza de que vai descobrir qual é! – respondeu Carla, já em jeito de despedida.

- Então até logo! Um beijo.

- Até logo. Beijinhos.

Depois de desligar o telefone, Ricardo olhou para as horas. Eram quase 20hs. Já era mais do que tempo de ir para casa, tomar um duche e comer qualquer coisa, antes de ir encontrar Carla.

Quando chegou a casa, Carla deu um beijo enorme no Filho. A melhor coisa do mundo era chegar a casa e ver Tomás, de pijama e roupão à espera dela com um sorriso rasgado no rosto. “É tão bonito o meu Menino!”, pensava sempre para consigo mesma. E no momento seguinte pensava em como ele era parecido com o Pai. O seu Filho era o que de mais importante tinha na vida, e não podia deixar que nada nem ninguém o magoasse.

- Vamos jantar, meu amor? A Mamã tem de sair depois de ires para a caminha. Vais portar-te bem e dormir logo, não vais?

- Sim, Mamã. Eu porto-me sempre bem!

Carla jantou, deitou o filho, deu-lhe um beijo de boa noite e dirigiu-se ao seu quarto. Sentiu um frio na barriga. Estava nervosa por ir encontrar-se com Ricardo. Passou uma escova nos seus longos e sedosos cabelos, e preparou-se para sair.

Já no carro pensou para consigo mesma que aquilo era loucura. Mas já tinha dito que ia, e não queria deixá-lo pendurado.

Num instante chegou à zona da Ribeira. Estacionou o carro no primeiro lugar que encontrou, e dirigiu-se ao Cubo. Há anos que não ia àquele lugar. Quando lá chegou viu Ricardo. Estava sentado na esplanada preferida dela. Tinha acertado. Respirou fundo e caminhou até ele. Ricardo, quando a viu, levantou-se de imediato e abriu-lhe um sorriso meigo e muito bonito. Estava com um ar cansado e abatido. Alguma coisa não estava em, e Carla havia percebido isso no momento em que o olhara.

terça-feira, 24 de julho de 2007

19

Margarida ainda hesitou em responder a Ricardo, mas percebeu que era inútil.

- Preciso de o ver. Preciso de saber que ele esta bem. Entendes?

- Não, não entendo. A única coisa que queres é ficar em paz com a tua consciência, para depois poderes ir embora para o teu mundo perfeito à vontade, e sem ter de olhar para trás. Vai-te embora Margarida. Já fizeste mal demais ao meu amigo. – disse-lhe Ricardo tentando, a muito custo, controlar a sua ira.

- Não sei porque é que me dou ao trabalho de te perguntar o que quer que seja. Quero ver o Miguel e vou vê-lo. E não serás tu quem irá impedir-me. – disse-lhe Margarida, voltando-lhe, de seguida, as costas e caminhando em direcção à enfermeira que se encontrava a sair de um dos quartos.

“Como é que o Miguel pode ter ficado naquele estado por causa desta mulher que não mostra o mínimo respeito por ele?”, questionou-se Ricardo. “O pior é que ela agora aparece ali, ele fica cheio de esperanças e depois ela volta a ir-se embora, outra vez.”, pensando ainda para consigo mesmo.

Ricardo sabia que Miguel sentia algo de muito forte por Margarida e, por isso mesmo, temia a reacção do amigo ao vê-la ali. Fechou os olhos, respirou fundo e dirigiu-se, novamente, ao caminho labiríntico que o levaria de volta ao seu carro.

Ao chegar ao carro, Ricardo recostou-se no banco e deixou-se levar, por breves instantes, pela música que tocava no rádio. Na sua mente surgiu Carla e a vontade de lhe ligar foi mais do que muita. Sentia uma necessidade imensa em estar com aquela mulher que mal conhecia, mas com quem se sentia tão bem. Mas não podia. Não naquele momento. Tinha uma reunião com uns clientes Franceses e não podia, de todo, voltar a adiá-la. Já chegava tê-lo feito no dia do acidente com Carla, por causa da discussão com Beatriz, que o deixara completamente fora de si.

Entretanto, ainda dentro do Hospital, Margarida dirigiu-se ao quarto onde estava Miguel. Este, ao vê-la, teve a reacção mais inesperada possível.

- O que é que estás aqui a fazer, Margarida?

- Precisava de te ver, de saber que estás bem. – respondeu-lhe Margarida, surpreendida com a frieza e com a secura de Miguel. Ainda há poucos dias aquele homem dizia que a amava, que seria capaz de tudo por ela, e agora tratava-a com a maior distância do mundo.

- Vai-te embora. – disse-lhe Miguel, num tom áspero – Não quero voltar a ver-te. Sabes, Margarida, este acidente, não tanto pelas mazelas físicas com que me deixou, mas mais pelo impacto psicológico que teve em mim, fez-me perceber que há coisas bem mais importantes na vida do que sofrer por quem não me quer. Apanhei o susto da minha vida. Às vezes fecho os olhos e revejo o acidente. Foi horrível. Muita sorte tive eu. Tendo em conta as circunstâncias poderia ter sido bem pior. Serviu para me mostrar que não vale a pena perder tempo com coisas inúteis e sem sentido. Podia ter-me acontecido algo bem mais grave. Felizmente não aconteceu. E agora o que quero é recuperar e esquecer tudo o que aconteceu.

- Até a mim? – perguntou-lhe Margarida, expectante.

- O que é isto, Margarida? Um jogo? Já visto no estado em que estou? Sim, quero esquecer-te. Esquecer que algum dia exististe na minha vida. Vai-te embora e quando saíres não penses, sequer, em tentar olhar para trás. Adeus, Margarida, adeus. – disse-lhe Miguel, voltando a cara para o outro lado.

Margarida baixou a cabeça e saiu do quarto com as lágrimas nos olhos. Nunca imaginara ouvir palavras daquelas de Miguel. Sabia que havia sido precipitada em envolver-se com outra pessoa. Agora estava grávida de um homem que não amava e, consequentemente, presa a ele para o resto da vida. Tinha-o percebido no dia seguinte à conversa com Ricardo. Aquele passeio até Matosinhos, e aquela manhã passada sentada em frente ao “Lais de Guia”, haviam-na feito perceber que era Miguel quem ela amava.

Tinha decidido que iria falar com ele, que lhe ia pedir que esperasse por ela até o Bebé nascer. Mas agora estava tudo perdido. Miguel não a queria mais. E pelo tom de voz dele, ela tinha percebido que a realidade era mesmo aquela, e não outra. Sabia que no momento em que saíra daquele quarto havia perdido Miguel para sempre. Tinha noção, também, de que nunca nenhum homem a havia amado daquela maneira, plena e incondicional, como Miguel a amara, e que jamais alguém voltaria a amá-la assim. Percebia, naquele momento, que tinha sido um erro tremendo não ter-lhe atendido o telemóvel durante aqueles três dias que haviam antecedido o acidente. Mas queria ter tudo organizado na sua cabeça antes de falar com ele. Queria falar-lhe cara a cara. Nunca tinha sido apologista das coisas que se dizer pelo telefone, e sabia que aquela conversa seria a mais importante de todas. Só que a sua necessidade de fazer as coisas demasiado certinhas havia deitado tudo a perder. Havia perdido Miguel para sempre.

As palavras de Miguel não haviam sido de mágoa nem de ressentimento, tinham sido, antes, palavras de cansaço e desilusão. Ele nem imaginava como a desilusão vertida em cada uma das suas palavras a haviam magoado. Mas tinha consciência de que era a única culpada. Havia perdido Miguel para sempre e a culpa era exclusivamente sua. Era certo que havia sido ele a pedir-lhe que saísse da sua vida, que era melhor assim. Mas a sua necessidade de o magoar, mesmo que de forma inconsciente, havia sido maior do que tudo, e o resultado era aquele. E Miguel jamais voltaria a estar ali para ela.

Agora ia ter de aprender a viver sem ele de verdade. E sabia que jamais voltaria a sentir-se completa como havia sentido ao lado dele.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

18

- Entendo-te, meu amigo - disse Ricardo, mas não podia entender. Miguel sabia que ninguém podia entender como ele se sentia naquele momento.

Sabia que não fazia sentido, a sua razão dizia-lhe que fora ele quem acabara, fora ele quem lhe dissera que não tinha a certeza do que sentia, que precisava de espaço para si, espaço para pôr as suas ideias e os seus sentimentos em ordem; sobretudo, que precisava de tempo, tempo para sair de casa, tempo para ficar em casa, tempo para ouvir os pais, tempo para ouvir os amigos, tempo para ouvir o seu melhor amigo Ricardo e, acima de tudo, tempo para se ouvir a si mesmo, para ouvir o que o seu coração lhe dizia a cada batida que dava no fundo do seu peito, mas também tempo para não ouvir nada nem ninguém, tempo para buscar apenas o silêncio absoluto e, no fundo desse silêncio, encontrar uma resposta.

Fora ele quem lhe dissera que não era justo fazê-la esperar por si, que não tinha o direito sequer de lhe pedir que atrasasse a vida enquanto ele tentava pôr a sua própria em ordem, que era uma estrada que ele tinha de seguir sozinho e que não podia prometer que os caminhos de ambos voltassem a cruzar-se. Sabia também que estas palavras a tinham magoado, sabia muito bem, vira-o em cada lágrima que ela vertera enquanto ele falava, vira-a lavada em lágrimas à porta do apartamento antes de entrar no elevador e descer até ao rés-do-chão. Saiu do prédio e da vida de Margarida, assim transpôs a porta, sem sequer olhar para trás.

Não olhara para trás talvez porque no fundo soubesse que voltaria a bater àquela porta, embora não esperasse encontrá-la fechada. Apesar de ter dito a Margarida que não queria que ela esperasse por si, no fundo do seu ser, secretamente, contava que ela o fizesse.

Contudo, apesar de saber disto tudo, apesar de ter consciência de que em nenhum momento Margarida fora desleal para consigo, o seu coração sentia-se atraiçoado. Doía-lhe de cada vez que lhe telefonava e ela não atendia o telefone e doera-lhe a dor mais aguda que alguma vez sentiu quando Ricardo lhe contara da gravidez.

- Não, tu não entendes, Ricardo. Não podes entender o que é ver a mulher que tu amas grávida doutro homem. Eu não me despistei por acaso, Ricardo! Eu estive quatro noites sem dormir, atormentado pelas tuas palavras, tentando em vão falar com ela, ouvir da boca dela a terrível notícia! Ela não me atendeu uma só chamada, Ricardo! Sabes o que é saires de casa completamente transtornado com um único objectivo a ocupar-te por completo: falares com ela, ouvires da boca dela que não, que tudo não passou dum pesadelo, que ela não conheceu ninguém e que não está grávida e que ainda gosta de ti e ainda te quer e que ainda vão ser felizes juntos? E sabes o que é teres a confirmação da verdade da forma mais dura? Vere-la no carro com outro homem, um homem que, ainda por cima, tinha aspecto de quem tem idade para ser pai dela, e veres a forma como ela o olha enquanto ele conduz e sentires que aquele olhar te pertence e te foi roubado!?

- Ninguém te roubou nada, Miguel! Mete isso na tua cabeça! Nin-guém te rou-bou na-da! Tu deitaste fora e outro guardou!

- Tu não entendes... Não podes entender... Eu vi com os meus olhos, Ricardo! Vi com os meus olhos e não vi mais nada depois do que vi - Miguel fechou os olhos depois desta última frase. Como Ricardo não dissesse nada, acrescentou em tom neutro: - Tanto não vi mais nada que despenquei ribanceira abaixo...

Miguel não disse mais nada e Ricardo também não falou; a cumplicidade entre os dois não exigia que falassem e há muito que Ricardo aprendera que o silêncio é também uma forma de comunicação, tão ou mais poderosa do que a palavra. Ao seu lado, o doente que arrulhava como uma rola parou finalmente de gemer. Embora Ricardo tivesse deixado de o ouvir, ou pelo menos de prestar atenção ao que ouvia, porque toda a sua atenção estava virada para Miguel, o silêncio que então se abateu sobre a enfermaria fê-lo olhar em volta.

Havia duas camas e ambas estavam ocupadas. Miguel encontrava-se na da janela e o doente que parecia uma rola na junto à porta. As paredes eram brancas, sujas e riscadas até cerca de meio metro do chão, que era verde com rasgos cinzentos, e a porta, entreaberta, era de madeira. Pela janela viam-se várias faculdades da Universidade do Porto e um metro em tons de amarelo serpenteando por entre elas ao som de ferro a raspar em ferro em cada curva. O vidro da janela estava levemente sujo e a caixilharia tinha alguns sinais de ferrugem.

- Miguel...

- Diz.

- Vou ter de ir. Ficas bem?

- Dentro do possível... - Miguel tinha as duas pernas e um antebraço engessados e duas escoriações na face cobertas generosamente com tintura de iodo.

Ricardo saiu da enfermaria pensativo. Pior do que o aspecto físico, preocupava-o o estado psíquico do amigo. Caminhava lentamente pelo corredor, envolto nestas cogitações, quando ouviu chamar o seu nome. Olhou e viu Margarida.

- Olá, Ricardo... - Parecia hesitante.

Ricardo olhou para ela e não disse nada. Margarida prosseguiu:

- Vieste visitar o Miguel? Em que sala é que ele está?

- Que queres dele? - perguntou.

terça-feira, 17 de julho de 2007

17

No dia seguinte, Ricardo entrou na Unidade de Cuidados Intermédios para encontrar uma senhora de cabelos brancos deitada na cama onde Miguel estivera. Dirigiu-se a uma enfermeira para perguntar o que era feito do seu amigo, que o informou de que o senhor Miguel Menezes tinha sido transferido ao final do dia anterior para a Medicina do piso três, por já se encontrar fora de perigo.

- E onde fica isso?

- O melhor é ir à linha azul perguntar.

- E onde fica a linha azul?

- No piso dois. Tem que sair lá fora e entrar pela entrada principal.

Munido desta parca informação, Ricardo saiu do edifício e voltou a entrar pela porta principal. Verificando que estava no piso um, subiu um andar e dirigiu-se à linha azul.

Depois de saber do paradeiro do seu amigo, desceu novamente ao piso um, onde lhe disseram que ficava a entrada das visitas, e passou os torniquetes. "Estranho método," pensou, "parece que estamos no metro." Chamou o elevador e esperou uma eternidade até a porta se abrir. No interior, já se encontravam várias pessoas de bata branca: médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos.

Marcou o botão três e o elevador começou a subir aos solavancos e fazendo ruídos como se algo estivesse prestes a desconjuntar-se. Parou no dois, entraram mais dois homens em fato-macaco azul e a porta fechou novamente, mas o elevador não arrancou logo. Passado um pouco, começou a subir, mas não parou no piso três, nem no quatro, nem sequer no cinco. Os ocupantes de bata começaram a rir e a comentar:

- Lá avariou outra vez.

- Calma, que ele vai ao zero-um tomar lanço e depois já funciona outra vez.

- O importante é que não pare no cinco. Se pára no cinco é o diabo...

Ricardo não estava a perceber nada e já não estava a gostar da brincadeira. Decidiu sair do elevador o quanto antes, o que, no caso, significou o piso oito, pois o elevador só parou quando não podia subir mais, e descer as escadas. Diz-se que para baixo todos os santos ajudam, pelo que descer cinco pisos não custou muito. Chegado ao piso três, Ricardo não viu nada que se parecesse com uma enfermaria onde o seu amigo pudesse estar internado. Pelas escadas desciam três jovens de bata e pasta académica na mão, alunos de Medicina, provavelmente. Ricardo dirigiu-se-lhes:

- Bom dia, desculpem, onde fica a Medicina do piso três?

Respondeu-lhe o rapaz de olhos azuis que seguia entre outras duas raparigas:

- O senhor tem de descer até ao piso um e seguir pelo corredor até aos próximos elevadores. Aí, apanha o elevador quatro até ao piso três e a Medicina é aí. Esta é a parte da Faculdade, não tem enfermarias.

Ricardo agradeceu e, lamentando a sua sorte por se ter metido inutilmente no elevador surreal, fez o percurso que o estudante lhe tinha descrito, conseguindo, finalmente, chegar à enfermaria para onde Miguel fora transferido. Ao entrar no corredor, sentiu que fizera uma longa viagem até ao Afeganistão. As paredes cinzentas, com a tinta a descascar e os rodapés lascados dos choques com macas, as camas no meio do corredor ocupadas por doentes de quem ninguém parecia querer ocupar-se, as cadeiras e as mesas de ferro esmaltado enferrujadas, meia dúzia de fios e um tubo a correrem junto ao tecto e o chão aqui e ali a levantar davam um ar decrépito e muito pouco hospitalar ao Hospital. Felizmente, na linha azul tinham-lhe dito em que cama encontraria Miguel, pelo que não lhe foi difícil encontrar a sala onde o amigo se encontrava, lado a lado com um doente que arrulhava como uma rola.

- Olá, grande Miguel! Pá, não imaginas a aventura que foi conseguir chegar aqui para te visitar hoje! Ia ficando preso num elevador e tudo!

- A sério? Conta!

- Já te conto. Primeiro, tu é que tens de me explicar como foi que adormeceste ao volante para vires parar aqui neste estado.

- Eu não adormeci.

Ricardo ficou uma fracção de segundo suspenso, enquanto milhares de pensamentos corriam pelo seu cérebro. Não conseguindo agarrar nenhum, disse a única frase que foi capaz de articular.

- Não? Acho que tens ainda mais para me contar do que eu imaginei, meu caro... Vou ajudar-te: diz-me que não tem a ver com a Margarida.

- Se o fizesse, estaria a mentir.

- Pois, já calculava... Vamos lá por partes, então.

Miguel contou então a Ricardo como saíra de sua casa na semana anterior com a cabeça a rodopiar depois de saber que Margarida estava grávida e como passara três dias tentando contactá-la, sem que ela nunca lhe atendesse o telefone.

- E que lhe ias tu dizer?

- Não sei, só sei que precisava de falar com ela. Precisava de vê-la, sei lá! Tu não imaginas como me senti e ainda me sinto!

- Não, não imagino, compreendo que não te sintas nada bem, mas não acho bem que quisesses falar com ela, pois só irias magoar-te.

- Impossível sofrer mais do que já estou a sofrer.

- Nada do que eu te diga vai ajudar a aliviar a tua dor, meu amigo; é algo que terás de superar por ti. Continua a contar-me o que se passou.

- Na Sexta-feira decidi ir a casa dela saber por que não atendia nem telefone nem telemóvel. Tu sabes onde ela mora, não sabes?

Ricardo assentiu com a cabeça e não lhe foi difícil imaginar a cena quando Miguel lhe explicou que, quando estava quase a chegar, vira Margarida...

- ...Com o novo namorado, ou amante, ou lá o que ele é, os dois num carrão; já estou a ver como é que ele a engatou.

- Miguel, não digas isso, que sabes muito bem que estás a ser injusto para com a Margarida.

Mas Miguel não queria saber. Naquele momento, não conseguia sentir nada para além de ódio por Margarida. E fora esse ódio que o fizera distrair-se da condução e galgar o passeio.

- Sabes aquela pontezinha por cima da linha do comboio? Foi mesmo antes que me despistei. Por sorte, não fui parar à linha do comboio, mas o impacto ainda foi suficiente para me deixar neste estado.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

16

- Carla? Sente-se bem? – perguntou Ricardo num misto de preocupação e surpresa.

De um momento para o outro o olhar daquela mulher tinha-se ensombrado, como se uma nuvem escura pairasse sobre si.

- Desculpe, Ricardo. Mas, de repente, lembrei-me de uma sensação estranha que tive hoje pela tarde e que me levou, impulsivamente, ao Colégio do meu Filho, só para o abraçar. – respondeu-lhe Carla, tentando desviar o rumo da conversa.

“Um Filho?”, questionou-se Ricardo a si mesmo. Depois lembrou-se da cadeira de transporte de crianças que tinha visto no carro de Carla, e tudo fez mais sentido. E logo um sem número de interrogações assaltaram a sua mente.

- A Carla tem um Filho? Que surpresa! Não pensei que fosse casada. É que como não usa aliança, julguei que fosse solteira. – disse Ricardo, na tentativa de perceber melhor alguns dos mistérios daquela mulher que o prendia por algum motivo que desconhecia.

- Sim, tenho um Filho de 6 anos. Chama-se Tomás. É o homem da minha vida. E não, não sou casada. Aliás, nunca fui. Sou Mãe solteira.

“6 anos?”, interrogou-se, novamente, Ricardo. “Mau”, pensou, “há aqui qualquer coisa que está a escapar-me. Quer-me parecer que a história desta mulher de linear e banal não tem nada.”

- Mas, e vai desculpar-me o facto de ser tão directo, isso quer dizer que foi Mãe com 17 anos. Um namoro que não resultou? – tentou, mais uma vez, Ricardo puzar o fio do novelo de mistérios e segredos que cada vez mais lhe parecia envolver Carla.

- Não foi um namoro falhado. Foi mais um amor não correspondido, que acabou por me dar o que de melhor tenho na vida – o meu Filho!

Naquele momento percebeu que Carla amava o Filho mais do que tudo na vida, que era por ele que vivia e que por ele seria capaz de tudo. Sentiu-se tocado com a imensidão do amor de Carla por Tomás. Mal conhecia aquela mulher, mas cada vez mais sentia necessidade de aprofundar o conhecimento superficial que naquele momento tinha com aquela mulher.

- Hummm, estou a ver. Um idiota, por tanto. Sim, porque só um idiota não corresponderia ao amor de uma mulher tão bonita e interessante como a Carla. Perdoe-me a franqueza, mas contra factos não há argumentos, e é assim que a vejo. E mal a conheço... – disse Ricardo, deixando Carla quase sem resposta.

- Não se deixe iludir pelo que vê, Ricardo. Nem sempre fui uma mulher bonita e interessante, como acabou de me descrever. Os anos e a vida fizeram de mim aquilo que sou hoje, mas já fui o “patinho feio”. – respondeu Carla num misto de tristeza e mágoa.

- Só falta dizer-me que era gozada no Colégio!

- Agora já não preciso de dizer. O Ricardo acabou de o fazer...

- Parece que meti o dedo nalguma ferida. Peço desculpa. Não era minha intenção. Mas fale-me do homem da sua vida. – pediu Ricardo tentando redimir-se.

Carla começou a falar do Filho e o seu semblante mudou. Os seus olhos iluminaram-se e o tempo voou. Falou do nascimento de Tomás, e da experiência de ser Mãe com 17 anos. Falou dos primeiros passos do Filho, das primeiras palavras, do primeiro dia de escola, do primeiro dente que lhe caiu. Quando se deram conta já eram horas de ir embora.

Como um bom cavalheiro, Ricardo pagou o jantar, puxou-lhe a cadeira e segurou a porta para que ela saísse. Já do lado de fora, deram o braço e caminharam lentamente até ao carro. Era estranho, mas sentiam-se bem um com o outro. Parecia que estarem ali, naquela noite amena de Primavera, de braço dado, era a coisa mais natural do mundo.

Nisto, Carla recordou-se que o homem com quem estava a sentir-se tão bem era, nada mais nada menos do que, o melhor amigo de Miguel, e um dos rapazes que nos tempos de Colégio lhe chamava “Freira”. Um arrepio percorreu-lhe o corpo e Ricardo sentiu-a tremer.

- Está com frio? Deixe-me tirar o casaco. – disse-lhe Ricardo.

- Não é necessário. Leve-me à empresa para eu ir buscar o meu carro, por favor. Já está tarde e amanhã é dia de acordar cedo.

Sem reclamar, Ricardo encaminhou-a para o carro para a levar ao seu destino. Quando estacionou à porta da empresa, Ricardo segurou no braço de Carla e pediu-lhe:

- Prometa-me que vamos voltar a sair juntos. Esta noite foi, simplesmente, fabulosa.

- Não sei se será boa ideia, Ricardo.

- Prometa-me, Carla. – insistiu Ricardo.

- Prometo. Agora deixe-me ir, por favor Ricardo, é o melhor. – e dizendo isto saiu do carro de Ricardo e entrou na garagem da empresa.

Já no seu carro, Carla encostou a cabeça no banco e fechou os olhos. Aquilo era uma loucura. Mas depois daquele jantar tinha ficado cheia de vontade de conhecer melhor Ricardo. Aquele não parecia nada o melhor amigo de Miguel, de quem se lembrava dos tempos de Colégio. Percebia, naquele momento, que o melhor havia sido mesmo não revelar-se. Pelo menos por enquanto. Mas a verdade logo viria à tona. E cada vez mais sentia que esse dia estava perto.

Era hora de ir para casa. Aquele dia tinha sido longo demais. E ainda tinha de pensar como iria livrar-se da festa do Colégio.

terça-feira, 10 de julho de 2007

15

- Estou? Carla?

- Olá, Ricardo. Só estou a ligar-lhe para lhe pedir para passar por aqui um pouco mais tarde, que ainda tenho umas coisas para fazer aqui no escritório.

- Está bem. Combinamos para daqui a meia hora?

- Pode ser. Obrigada e até logo.

- Até logo, Carla.

Ricardo suspirou de alívio. Quando vira o número de Carla no ecrã do telemóvel, pensara que a chamada se destinara a cancelar o jantar.

"Mais meia hora de espera", pensou. Aproveitou esse tempo para telefonar aos pais de Miguel a saber novidades. Tinha sido Ricardo quem os avisara, mas só depois de saber que o amigo estava livre de perigo, para não os preocupar em demasia. Entretanto, as coisas tinham-se complicado com o tromboembolismo pulmonar, mas o tratamento tinha sido iniciado a tempo e os pais de Miguel confirmaram que a situação clínica do filho estava a evoluir favoravelmente e que, segundo os médicos, o período crítico já tinha passado e em breve sairia da Unidade de Cuidados Intermédios. As más notícias eram que se seguiriam dois meses de convalescença em regime de internamento e mais uns quantos de fisioterapia, em função da evolução.

Ricardo tinha visitado o amigo nesse dia de manhã, mas ainda não tinha tido coragem de lhe perguntar os motivos do acidente. Miguel ainda estava todo engessado, ligado a fios e tubos, numa sala cheia de aparelhos cinzentos e de monitores com o fundo preto e linhas verdes que iam serpenteando, umas com ângulos mais agudos, outras com curvas sinusóides. Ricardo saíra do Hospital pensando como é triste estar num hospital.

Findo o telefonema, olhou novamente para o relógio. Ainda lhe restavam vinte e cinco minutos. "É incrível, pareço uma criança, ou pior, um adolescente antes do seu primeiro encontro. Acho que da primeira vez que saí com a Beatriz não estava tão ansioso!". Recriminou-se pelo facto e olhou à sua volta.

O seu escritório ficava num sétimo andar; da janela via-se o Rio Douro e o lado de lá da margem. O melhor que Gaia tem é a vista para o Porto, ouvira dizer muitas vezes, e, ao olhar pela janela, não podia deixar de concordar que aquela paisagem devia estar entre as mais belas do Mundo. "Por algum motivo o Porto é Património da Humanidade", disse para consigo, e deixou-se estar mais um pouco a ver o entardecer.

O Sol entrava pela janela, que se estendia a todo o comprimento da parede, e iluminava a sala, dando à mobília reflexos dourados. Era um gabinete moderno, simples e funcional: três sofás pretos num dos cantos com uma pequena mesa de vidro ao centro, sobre um tapete onde sobressaía o azul claro e uma mesa comprida, em forma de ele, terminando um dos braços num círculo que servia como mesa de reuniões. O tampo era castanho e os pés pretos, tal como pretos eram os armários e as duas cadeiras onde, dum lado, se sentavam os clientes, e do outro Ricardo os atendia, esta última uma cadeira com rodinhas. Como ele gostava das cadeiras com rodinhas! Já em criança se divertia no escritório do pai, sentado numa cadeira também com rodinhas e empurrando-a dum lado para o outro. Depois, na faculdade, os amigos riam-se dele, porque, onde quer que houvesse uma cadeira com rodinhas, era aí que Ricardo se sentava.

- A que tem rodinhas é minha; ninguém se sente! - costumava exclamar mal entrava numa sala.

As rodinhas da cadeira, tal como os pés da mesa, assentavam numa carpete também em tons de azul claro, sobre a qual se encontrava também um vaso com uma planta. Ricardo fazia questão de ser ele mesmo a regá-la, todos os dias. Nas paredes, alguns quadros, a maioria oferecidos por um amigo que se dizia pintor e, na verdade, até tinha jeito e já tinha feito meia dúzia de exposições, embora fosse advogado de profissão.

Meia hora passou e Ricardo saiu finalmente para ir buscar Carla. Tinha decidido não a levar ao mesmo restaurante onde a deixara à espera na Sexta-feira, mas sim a um na Ribeira, que também era bastante famoso.

Entraram e Ricardo soube que fizera a escolha certa ao ver o ar impressionado de Carla. O ambiente era distinto, os empregados andavam de libré branco com botões dourados e a meia-luz dava um ar ao mesmo tempo acolhedor e intimista. Ricardo escolheu uma mesa debaixo duma arcada, com vista para o Rio, e puxou a cadeira para que Carla se sentasse.

"Um cavalheiro", pensou.

Ricardo sentou-se do outro lado da mesa, em frente a Carla, e prepararam-se para escolher: bife três pimentas para ele; arroz de gambas para ela.

Assim que o empregado se afastou com os pedidos, Ricardo disse:

- Sabe, Carla, vou contar-lhe uma história que se passou comigo há uns anos, quando entrei para a faculdade. Logo nos primeiros dias, encontrei uma rapariga, também do primeiro ano, e disse-lhe, com o maior descaramento, que a conhecia, mas não sabia donde. Ela olhou para mim com cara de poucos amigos e seguiu caminho sem me dirigir a palavra. Eu fiquei sem entender nada; achei que ela era simplesmente mal-educada e não me preocupei muito com o assunto. Dois meses depois, por aí, voltei a encontrá-la numa festa de aniversário duma outra colega. Aí, sim, falámos, e vim a descobrir que, de facto, nos conhecíamos, pois tínhamos participado os dois no mesmo torneio de ténis, há uns anos atrás, quando eu ainda sabia jogar.

- Aposto que ainda sabe jogar, e bem! - exclamou Carla.

- Oh, longe disso! Se a Carla me visse jogar agora, iria rir-se da minha pobre figura! Mas pronto, só lhe contei este episódio para que a Carla não pense que, quando eu digo que tenho a sensação de que a conheço dalgum sítio, não julgue que é apenas uma frase feita ou uma forma de quebrar o gelo; é a mais pura verdade. Não sei se a Carla tem a mesma sensação, mas eu tenho a certeza de que já me cruzei consigo nalgum lugar antes.

- É curioso que eu tenho a mesma sensação, mas não sei donde possa ser. O Ricardo tem que idade, se é que posso perguntar-lhe?

- Claro que sim! Tenho vinte e quatro anos.

- É mais velho do que eu, o que invalida que tenhamos andado juntos na escola, e não andou nunca em Biologia, pois não?

- Nem por isso, nem por isso... Mas olhe que talvez nos tenhamos cruzado na escola. Mesmo sendo de anos diferentes, podíamos conhecer-nos de vista, não?

- Pois, pode ter razão. Em que escola andou?

- Não andei numa escola; andei num colégio.

Carla soube donde conhecia Ricardo mesmo antes deste dizer o nome do Colégio. O homem que se encontrava à sua frente era, nos tempos de escola, o melhor amigo de Miguel. Sê-lo-ia ainda? Carla não sabia o que pensar nem o que dizer. De repente, lembrou-se do telefonema da manhã. O melhor amigo de Ricardo estava no hospital. Seria Miguel quem estava no hospital? Carla queria confirmar as suas suspeitas, queria saber notícias de Miguel, mas não sabia se devia revelar já a sua identidade.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

14

Nem queria acreditar quando Amélia lhe passou a chamada, logo às 9h30. Mais uma segunda-feira a começar com a presença de Ricardo. Depois da conversa, que havia sido bem mais serena e esclarecedora do que imaginara, Carla respirou fundo. A vida, realmente, era tramada. Ela revoltada, a pensar que ele a tinha deixado pendurada no “Cafeína”, e ele num Hospital a tentar saber notícias do melhor amigo que tinha sofrido um grave acidente de carro. Tremeu só de pensar no amigo de Ricardo. Um acidente de carro às 18hs, por ter adormecido ao volante, sem qualquer explicação, pelo menos conhecida. Sentiu algum remorso por ter pensado tão mal de Ricardo. Mas pronto, nessa noite jantariam e tudo ficaria resolvido.

A manhã voou e quando se deu conta já era hora de almoço. Recordou, mais uma vez a conversa com Ricardo e o novo convite para jantar, ainda nessa noite. Sentiu um arrepio percorrer-lhe todo o Corpo. Aquele homem tinha qualquer coisa.

O som estridente do seu telemóvel transportou-a de volta à realidade.

- Olá Francisca! Há quanto tempo! Está tudo bem contigo?

- Olá Carla! É verdade, já lá vão uns meses, mas sabes que a nova vida de casada ocupa-me muito tempo! Mas não foi para falar disso que te liguei. Vai realizar-se uma festa no nosso antigo Colégio para os ex-alunos, e eu faço parte da organização. Gostava muito de poder contar com a tua presença. A nossa turma do décimo primeiro ano já confirmou quase toda, és das poucas pessoas que faltam confirmar! Posso contar contigo? – disse Francisca de seguida, como se as palavras fossem fugir-lhe.

- Não posso responder-te já, mas até ao fim da semana digo-te alguma coisa. Pode ser? – respondeu-lhe Carla, tentando ganhar algum tempo para poder pensar bem no que fazer.

- Está bem! Mas de sexta-feira não pode passar, porque depois fica muito apertado.

- Combinado. No máximo, até sexta-feira, terás notícias minhas.

- Ficarei à espera, então! Beijinhos para ti e para o Tomás.

- Obrigada! Beijinhos para ti também. Dá um beijinho nosso ao António.

Francisca era uma das suas melhores e mais antigas amigas. É certo que a ida de Carla para Lisboa havia alterado os contornos daquela amizade, e que o facto de se ter recusado a contar-lhe quem era o Pai de Tomás também não havia ajudado muito. Mas, na verdade, continuavam muito boas amigas. E Carla não sabia como livrar-se daquela reunião. Miguel também lá estaria, e não lhe apetecia, de todo, vê-lo. Alguma desculpa arranjaria para se furtar ao encontro.

De repente sentiu que o chão lhe fugia, e ficou inquieta. Pensou no filho e sentiu uma necessidade enorme de estar com ele, de ter a certeza de que ele estava bem. Num ápice entrou no elevador e desceu até à garagem. Já ao volante, dirigiu-se para o Colégio de Tomás e estacionou ali perto. Já lá dentro, o coração de Carla acalmou-se quando o filho, assim que a viu, lhe abriu o seu sorriso mais bonito e correu para a abraçar. Apertar o filho nos braços era, sem dúvida alguma, a melhor sensação do mundo.

- Vou para casa agora, Mamã? – perguntou-lhe Tomás, lembrando-se que tinha acabado de almoçar e que ainda não devia ser hora de ir para casa.

- Não, meu querido. A Mamã é que teve muitas saudades tuas e resolveu vir dar-te um beijo enorme e um abraço bem apertado, daqueles que só tu sabes dar.

- Mamã, não digas essas coisas... – disse Tomás, ficando um pouco atrapalhado, - A minha namorada fica com ciúmes e depois já não quer ser minha namorada outra vez.

- A tua namorada? Mas tu tens uma namorada e não contavas à Mamã?

- Estas coisas de meninos não se falam com as Mamãs, só com os Papás. Mas eu não tenho Papá... – respondeu-lhe Tomás, cujo olhar se tornou triste.

Mas a tristeza logo se dissipou, quando ouviu outro menino chamá-lo para ir brincar mais um pouco, antes das aulas da tarde. Deu um beio rápido na Mãe e lá foi ele, saltitante e contente.

Mais uma vez, Carla sentiu o coração apertado. Tomás precisava de um Pai. E, mais cedo ou mais tarde, teria de contar a verdade a ambos. Mas sabia que a chegada desse dia iria trazer-lhe alguns dissabores e muitas complicações. Só que a tristeza que via na expressão do Filho fazia-a compreender que o dia da verdade teria de chegar bem rápido.

Regressou ao escritório pronta para enfrentar mais uma tarde de trabalho, que acabou por passar mais depressa do que estava à espera.

No seu gabinete, a alguns quilómetros dali, Ricardo pensava em Miguel e nas razões daquele estúpido acidente. Razões que ainda desconhecia, mas que no dia seguinte ele iria ter de dar-lhe. Nada daquilo fazia sentido.

Pensou em Carla, e sorriu de si para consigo. Tinha ficado de ir buscá-la à empresa, e estava quase na hora. Aquela mulher agradava-lhe. E não era só fisicamente. Havia qualquer coisa nela que o fazia ter vontade de se perder. E os mistérios que a rodeavam, tornavam-na ainda mais interessante.

Preparava-se para sair quando o seu telemóvel tocou e viu o número de Carla a piscar no visor.

terça-feira, 3 de julho de 2007

13

Em Lisboa, o Sol já se tinha posto há algumas horas quando Eduardo deixou a noiva em sua casa, depois da viagem de regresso do Porto. Antes de sair do carro, disse Leonor:

- Portanto, tu não és pai de facto deo Tomás, mas apenas pai de direito, não é?

- Sim, docinho, é isso mesmo. A Carla explicou-te tudo como se passou, melhor do que eu seria capaz. Um dia ela telefonou-me, alterada, e pediu-me para nos encontrarmos. Contou-me que um colega da escola perdido de bêbado se tinha servido dela a seu bel-prazer, que ela nem sabia o que lhe tinha dado, mas que o mal já estava feito e que, o que era pior, ela tinha engravidado por causa disso e ele dizia não se lembrar de nada. Cá para mim, se queres saber, ele sabe muito bem o que fez, porque um homem não esquece uma coisa dessas...

- Nem bêbado?

- Se estivesse suficientemente bêbado para se esquecer, também estava demasiado bêbado para conseguir consumar o acto, é o que eu acho, não que fale por experiência própria.

- Sim, meu príncipe, já sei que és muito bem comportadinho, e é assim que eu gosto de ti...

- Mas pronto, dizia eu que ela se viu com um bebé para nascer e um pai que não se lembrava de nada.

- E por que foi que ela não fez testes de ADN para determinar a paternidade?

- Pois, foi o que eu também lhe sugeri, mas os pais dela quiseram abafar a coisa o mais possível, e, para fazer os testes, era preciso meter processos em tribunal e eles tiveram medo de que a notícia se espalhasse. Sabes como é, uma família conhecida e influente do Norte, que como tu sabes é muito mais conservador do que Lisboa, não podia dar-se ao luxo de ter uma adolescente grávida na sua pura árvore genealógica... - Eduardo pronunciou as últimas palavras da sua frase com um tom particularmente amargo. Continuou: - Aliás, acho que ela disse aos pais que nem sabia quem era o pai do filho; não sei como eles engoliram essa. O choque de verem a filha grávida aos dezasseis anos deve ter sido tal que nem reflectiram na estranheza de ela não saber quem era o pai. Afinal, a Carla nunca tinha sido do género de andar com muitos rapazes (para dizer a verdade, nunca lhe conheci nenhum namorado, mas pode ser que não me tenha contado dessas aventuras), muito menos de poder estar confusa quanto a quem seria o pai da criança. Mas pronto, ela acabou por me falar para eu assumir a paternidade, visto que a Lei Portuguesa não permite que uma criança seja registada sem pai. Na altura, eu era mais novo e inconsciente do que sou hoje e disse que sim.

- E assim ganhaste um filho sem teres feito nada por isso.

- Ora nem mais! - exclamou Eduardo.

- Está certo. Mas explica-me uma coisa: do ponto de vista legal, tu és o pai dele, não é?

- Sim, sou eu.

- E se se vier a saber que o pai biológico é outro? O Tomás passa a ter dois pais?

- Não, trâmites legais à parte, o resultado prático é que eu deixo de ser pai.

- Estou a ver...

Despediram-se com um beijo rápido e Leonor entrou em casa.

No Porto, a enfermeira da Unidade de Cuidados Intermédios notou no seu monitor o aumento da frequência respiratória de Miguel. Levantou-se e foi até à cama onde este se encontrava deitado a dormir e notou uma certa dificuldade na respiração. A enfermeira saiu do quarto e foi chamar o médico do serviço. Quando este voltou, Miguel tinha acordado e queixava-se de dores nas costas.

- Ele foi operado ontem pela Ortopedia, não foi? - perguntou o médico à enfermeira.

- Sim, senhor doutor. Tinha várias fracturas nos dois fémures e num dos antebraços.

- Pois... Acho melhor pedir umas análises e uma TAC. Vou fazer a requisição; pode ir preparando o material para colher o sangue.

Dito isto, quer o médico, quer a enfermeira se afastaram da cama de Miguel, que os chamou de volta e perguntou:

- Mas, senhor doutor, o que é que eu tenho agora?

- Ainda não sabemos, por isso é que vamos fazer as análises que lhe vou pedir e vai fazer a TAC.

- Mas deve ter alguma suspeita, não é? Eu gostava de ser informado sobre o meu problema e de saber o que me fazem enquanto aqui estou, se não for pedir muito - Miguel arrependeu-se imediatamente das últimas palavras, com medo de ser mal interpretado pelo médico, mas já estava dito, era tarde demais.

O médico franziu o sobrolho, olhou para a enfermeira e retorquiu agastado:

- Senhor Miguel, eu não lhe posso dizer o que o senhor tem, porque não sei o que é. Suspeito de que possa ser um tromboembolismo pulmonar, mas só depois dos exames é que vou ter a certeza.

- Um quê?

- Uma embolia pulmonar, já ouviu falar? O senhor foi operado, está deitado numa cama, imobilizado, tudo isso aumenta o risco de que se formem pequenos coágulos nas suas veias, principalmente nas pernas, que depois podem ir pelo sangue e encravar nos pulmões. É isso que vamos conferir com os exames que lhe vou pedir. Tem mais alguma dúvida?

- Já ouvi falar de muita gente que morreu disso...

- Não se preocupe, que nós vamos tratá-lo bem. Até já.

Miguel não falou mais e concentrou-se na sua dor. O médico e a enfermeira afastaram-se conferenciando entre si:

- Senhora enfermeira, a TAC só é feita amanhã de manhã, não é?

- Sim, senhor doutor.

- Então olhe, vou pedir também para começar já o tratamento com heparina, que é melhor não facilitar. Operado ontem, ainda por cima por Ortopedia, com este quadro... Tenho quase a certeza de que a TAC me vai dar razão. Bem, vou passar as requisições. Até já.

A dez quilómetros dali, Carla não conseguia adormecer; pensava e pensava na conversa que tiveram horas antes com a noiva de Eduardo, em que lhe explicara toda a história a respeito do nascimento de Tomás e como o primo se tornara o Tio Dado. Estava à espera duma reacção diferente da parte de Leonor. Na verdade, até lhe estava a parecer fácil demais; contara com alguma incredulidade, raiva, talvez incompreensão, mas, afinal, Leonor mostrara-se pouco surpreendida e aceitara com naturalidade a situação e, o que é mais, o desejo de Carla de manter o segredo apenas entre os três. Pensava também na pergunta de Tomás, “Mamã, porque é que os outros meninos têm um Papá e eu não”, e em como lhe responder. Não gostava de ter de mentir ao filho, mas havia mais em jogo.