quinta-feira, 1 de novembro de 2007

48

Do outro lado da porta, Ricardo caminhou a passos lentos para o elevador e carregou no botão. Olhou à sua volta e respirou fundo, receando que aquela fosse a última vez que via aquele vestíbulo. Procurou guardar na retina as paredes forradas a madeira, as luzes de halogénio do tecto falso, o botão quadrado e a porta cor de vinho do elevador, o vaso branco esquecido ao canto onde crescia uma planta de folhas paralelinérveas verde escuro que não conseguiu identificar, como se isso pudesse restituir-lhe Carla, ou, pelo menos, mitigar o sentimento de perda que o invadiu mal saiu do apartamento onde Carla vivia. Sobressaltou-se com o aviso sonoro da chegada do elevador e foi a passo lento que entrou nesse cubículo metálico que o levaria até ao rés-do-chão. Saiu do prédio cabisbaixo e dirigiu-se para o carro, entrou e pô-lo em movimento.

Àquela hora não havia muito trânsito e Ricardo pisou com força o acelerador ao longo avenida onde Carla morava. A sua cabeça estava longe dali; conduzia mais por instinto do que prestando verdadeiramente atenção às manobras que efectuava, bem como às dos restantes condutores. Nestas circunstâncias, Ricardo só se apercebeu do carro que entrava na avenida vindo da rua que se abria à sua direita demasiado tarde para lhe ceder a passagem, como estava obrigado pelas leis da estrada. Para evitar a outra viatura, travou a fundo e guinou para a esquerda, atravessando toda a largura do lado direito da avenida, até ao separador central, e foi com alguma sorte que conseguiu evitar o impacto desse lado. Depois de ganhar de novo o controlo sobre o percurso do carro, agarrou o volante com as duas mãos e apercebeu-se de que estava a tremer da cabeça aos pés. O condutor do outro veículo, que tinha entretanto parado, abriu o vidro e gritou-lhe qualquer coisa que Ricardo não ouviu. Acenou-lhe um pedido de desculpas e, verificando que não havia danos materiais nem ninguém ferido, arrancou sem mais delongas, pois depois do acabara de ouvir da boca de Carla não sentia em condições de ouvir mais nada e muito menos ter uma discussão no meio da rua.

A tarde passou-se até às quatro e meia ocupada entre papéis e reuniões a que não prestou a mínima atenção. A essa hora, Ricardo decidiu que naquele dia não estava em condições de fazer mais nada e decidiu ir para casa. Nem sequer tinha mais compromissos agendados com clientes para o resto do dia, pelo que nem sequer perdeu tempo a dizer a Cristina que ia embora. Esta viu-o sair do escritório e passar em direcção à saída e também não o questionou.

Quando chegou a casa, deixou-se cair no sofá, pegou no controlo remoto da televisão e ligou-a. No ecrã apareceu um rancho folclórico que ia dançando ao som de acordeões, violas e adufes. Ricardo deixou-se ficar a olhar para as mulheres que rodopiavam à volta dos homens de chapéu e colete pretos, mas o seu olhar era totalmente vazio, como de resto se encontrava a sua alma. A sua grande dúvida era, nesse momento, o que fazer com a informação que Carla lhe dera. O seu melhor amigo tinha um filho de seis anos e não sabia e isso não lhe parecia correcto. Menos correcto ainda lhe parecia o seu melhor amigo estar de posse dessa informação e sonegar-lha. Menos correcto!? Era traição, isso sim! No entanto, ao mesmo tempo, a mãe da criança mexia consigo mais do que poderia ter imaginado que viria a acontecer quando a vira pela primeira vez e essa mãe, por quem estava sem dúvida apaixonado, pedira-lhe, quase lhe implorara, que mantivesse o seu segredo. E ele não podia sequer imaginar causar sofrimento a Carla... Por momentos, lamentou-se por ter esgaravatado aquele assunto:

"Se eu não tivesse perguntado, se não tivesse insistido, não saberia de nada e não estaria agora neste dilema... Quem me mandou a mim?"

Mas logo se convenceu de que era melhor assim do que viver eternamente na dúvida e deixar-se enganar apenas para poder continuar a viver a sua vida pactuando com a mentira, uma mentira que era preciso terminar dalguma forma, apesar de ser uma mentira fruto do medo, da insegurança e da inexperiência e por isso desculpável.

"Negar um pai a um filho e um filho a um pai não é uma mentira desculpável!", indignou-se logo de seguida.

Continuou com estes pensamentos antagónicos até pouco depois das oito, em que foi arrancado ao seu mundo pelo som do telefone de casa. Atendeu e ouviu a voz de Miguel, que nem precisou de dizer por que ligava; Ricardo lembrou-se imediatamente de que tinha combinado jantar com o amigo. Tentou desmarcar, mas Miguel insistiu, afirmando que precisava mesmo de falar consigo e que não podia ficar para outro dia, pois nem andava a dormir bem. Ricardo lembrou-o de que ainda estava em convalescença depois do prolongado internamento e das operações a que fora sujeito por causa do acidente, mas nem assim conseguiu demovê-lo, pelo que acabaram por combinar encontrar-se daí a meia hora no restaurante onde costumavam jantar quando queriam conversar só os dois.

O dito restaurante ficava situado em frente ao mar e era relativamente pequeno. Tinha as paredes, pintadas dum tom laranja esbatido, enfeitadas com recordações das múltiplas viagens que o dono fizera pelo mundo fora.