terça-feira, 30 de outubro de 2007

47

A mão de Ricardo ainda segurava a sua, quando Carla a apertou suavemente. Então, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, ela começou a falar:

– Fui da turma do Miguel do nono até meio do décimo primeiro ano. Eu era o patinho feio do Colégio: era magrinha, desengonçada, e não tinha cuidado com o que vestia. Para tu veres, nesse tempo todo só fiz uma amiga, a Francisca, e foi já no início do décimo primeiro. Mas antes disso, ainda antes do fim do nono ano, se não estou em erro, o teu amigo achou por graça colocar-me uma alcunha, a “Freira”, e a coisa pegou. A princípio, ainda disfarçavam, chamavam-me pelo nome à minha frente e referiam-se a mim pela alcunha quando eu não estava, mas a certa altura passou mesmo a ser declarado, e das poucas vezes que ele se dirigia a mim chamava-me aquilo. Éramos os melhores alunos da turma, e havia uma certa rivalidade, embora que disfarçada, mas ele ganhava na maioria das vezes. Ainda assim, e sem saber muito bem como, apaixonei-me por ele. O Miguel era o sonho de todas a raparigas do Colégio, e eu não era excepção. –, Dizendo isto, Carla fez uma pausa e, ao olhar Ricardo nos olhos, apercebeu-se de como tudo aquilo o estava a magoar, mas sabia que já não havia volta a dar e teria de ir até ao fim, pelo que continuou: – Foi na Festa de Carnaval do décimo primeiro ano que tudo aconteceu. Estavam todos eufóricos, era a primeira festa fora do Colégio que nos era permitido fazer. Eu não queria ir, mas a Francisca insistiu tanto que lá acabei por ceder. Quando lá cheguei fiquei maravilhada. Tinha dezasseis anos e nunca havia entrado numa discoteca. Bebi um pouco, e, como não estava habituada, fiquei logo demasiado alegre. Dancei muito, e já quase no fim da festa ouvi-o chamar o meu nome. Até àquele momento ele nunca tinha dito o meu nome; eu tinha sido sempre “a Freira”. Estendeu-me a mão e eu, sem saber muito bem porquê, estendi-lhe a minha. Levou-me para fora dali e beijou-me e eu nem queria acreditar que aquele com quem todas as raparigas do Colégio sonhavam estava ali comigo, a beijar-me! Senti-me a rapariga mais sortuda e feliz do mundo. Fui uma tonta e deixei-me ir. Tenho consciência de que a culpa não foi só da bebida e não penses que me furto às minhas responsabilidades. No dia seguinte fui falar com ele, mas ele disse-me que não se lembrava de nada. Fiquei desfeita, mas o pior ainda estava para vir um mês e meio depois: estava grávida e o Miguel nem se lembrava do que tinha acontecido entre nós. Os meus Pais foram fantásticos e eu fui viver para Lisboa e em Novembro o Tomás nasceu. O resto já tu sabes.

O silêncio caiu sobre eles como um manto negro e pesado que os sufocava. Foi Ricardo quem o quebrou:

– Ele tinha o direito de saber… Ainda tem. E o Tomás tem o direito de conhecer o Pai, não achas?

– Acho, mas tenta colocar-te no meu lugar. Eu tinha de proteger o meu Filho. O Miguel ia rejeitá-lo; ele não se lembrava de nada. Tu conhece-lo melhor do que eu; sabes bem como a opinião dos amigos era importante para ele. Achas mesmo que ele iria assumir que tinha ido para a cama com a “Freira” e que ia ser Pai do Filho dela??? Ora, Ricardo, nem tu acreditas nisso… – e dizendo isto, deixou-se cair novamente nas almofadas.

– Talvez tenhas razão, mas eu não sei o que pensar. O Miguel é o meu melhor amigo e o Tomás é a cara dele e tu és a mulher que eu amo… O que é que eu faço, Carla? Dizes-me o que é que eu vou fazer, para além de enlouquecer? – o desespero na voz de Ricardo era assustadoramente doloroso.

Carla voltou a pegar na mão de Ricardo e este, num impulso, abraçou-a com força, como se tivesse receio de a perder no momento em que a soltasse.

– Não te quero perder… – sussurrou-lhe ele ao ouvido.

– Eu também não te quero perder, Ricardo. Mas também não quero perder o meu Filho… – respondeu-lhe Carla, perguntando de seguida – Vais contar-lhe, não vais?

Ricardo tapou o rosto com as mãos e sentou-se na cama, baixando de seguida a cabeça. Carla aproximou-se e percebeu que ele já não era, naquele momento, capaz de conter a dor e que dos seus olhos brotavam lágrimas de desespero. Com cuidado e carinho abraçou-o e choraram juntos. Quando se afastaram, Ricardo limpou o rosto, olhou-a com uma expressão indecifrável, como se estivesse a despedir-se dela e disse:

– Não sei ainda o que vou fazer. Tenho de pensar muito bem. Depois ligo-te, mas agora tenho de ir arejar a cabeça e colocar as ideias no lugar. Desculpa. – levantou-se e dirigiu-se à porta da rua.

Carla seguiu Ricardo e quando estava à porta de sua casa ele olhou-a e abraçou-a mais uma vez, beijando-a de uma forma intensa e apaixonada, e saindo de seguida. Quando a porta se fechou, Carla sentou-se no chão e chorou até que as lágrimas secassem. Acabava de perder o homem que amava e tinha plena consciência disso.

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