terça-feira, 25 de setembro de 2007

37

Beatriz trazia um vestido branco com pintas pretas que lhe assentava primorosamente e parecia delicada como sempre, com o seu passo soberano e a sua pose de princesa de reinos perdidos no fim do mundo. De repente, enquanto atravessava a Avenida da Boavista, tendo à sua frente a Casa da Música, cujas paredes nuas de cimento reflectiam ferozmente a luz branca do Sol, o seu olhar cruzou-se com o de Ricardo, que olhava distraidamente os peões que atravessavam à sua frente.

Ao ver o fundo dos olhos verdes de Beatriz, donde parecia que emanava uma luz misteriosa, Ricardo sentiu-se invadir por um sentimento estranho. Ao mesmo tempo, duas imagens tomaram forma dentro de si – dum lado, Beatriz e a bela história de amor abruptamente interrompida naquele Sábado de Março em que ela saíra de sua casa e da sua vida sem dar qualquer explicação nem sequer olhar para trás; do outro, Carla e tudo o que a sua proximidade o fazia sentir. Ficou tonto por uns momentos, mas logo se recompôs e desviou o olhar. Optou por ignorá-la e nem sequer fez menção de cumprimentá-la – as palavras que ela lhe dissera ao telefone da última vez que tinham falado ainda lhe doíam:

“Com o capacete, ela não vai saber se a vi ou não,” tranquilizou-se.

O semáforo tornou-se verde e Ricardo avançou sem olhar para o passeio do outro lado, onde Beatriz parara uns momentos e se voltara para trás, ficando a seguir a sua mota com o olhar. Quando esta se perdeu no trânsito da Rotunda, Beatriz retomou o seu caminho em direcção à entrada do parque de estacionamento subterrâneo.

Ricardo, por sua vez, continuou o seu caminho e só voltou a parar em frente à casa de Miguel. Apeou-se, deixou a mota junto ao passeio e dirigiu-se para a entrada do prédio, tocando à campainha. Quem atendeu foi a mãe de Miguel, que logo o mandou subir.

Ao entrar no apartamento, Ricardo foi recebido pela mãe de Miguel, que tomou o seu blusão e o pendurou no bengaleiro. Ricardo viu a mesa já posta na sala, mas não viu o amigo.

– Onde está o Miguel? Não deixou aquele malandro sair, pois não?

– Não, claro que não, ora essa! – exclamou a mãe.

Nisto, Miguel entrou no vestíbulo, sorrindo enquanto metia a sua colherada na conversa:

– Eu bem tentei, mas parece que a minha lábia já não é o que era. Ou então a minha mãezinha tornou-se imune aos choradinhos do filhinho... – disse enquanto abraçava a mãe. Depois, virando-se para ela com ar muito sério, acrescentou: – Dona Luísa, isto são modos de receber uma visita? Manter assim uma pessoa de pé na entrada sem a convidar a sentar-se um pouco enquanto o almoço não é servido? Ai, ai, ai, estou a ver que está a esquecer as mais elementares regras de boa educação... – depois, encaminhou Ricardo para a sala de estar enquanto lhe dizia: – Entra, pá, a casa é tua; já lhe conheces os cantos e não há cá cerimónias contigo! O meu pai ainda não chegou, por isso ainda vamos ter de esperar pelo almoço. Não vieste com pressa nem fome, pois não?

– Não, não! Tenho todo o tempo do mundo! – apressou-se a dizer Ricardo.

– Então óptimo, senta-te e podemos conversar um bocado enquanto esperamos.

– E eu volto já, vocês os dois conspirem à vontade – brincou Luísa.

– Podes crer que temos muito para conspirar! – exclamou Miguel sorrindo. Porém, ao voltar-se para Ricardo, já não estava tão sorridente:

– Então, meu caro, é agora que vais explicar-me tintim por tintim a nossa conversa do outro dia?

Ricardo sentiu-se desfalecer.

– Bem, meu caro, não é nada de importante. Como te disse, é um assunto de mulheres. Depois da Beatriz, ainda não tinha conhecido assim nenhuma extremamente interessante...

– Estou a ver que te caçaram – interrompeu-o Miguel.

– Não é nada disso, pá! – exasperou-se Ricardo. – O problema é que esta mulher tem o seu quê. Mas fala-me antes de ti; como te sentes?

– Lindamente! Para a semana já posso ir trabalhar. E não tarda nada volto a morar na minha casinha, que a minha mãe é muito querida, mas sufoca-me um bocado; tu lembras-te de por que saí de casa, não lembras?

– Sim, claro que lembro, e compreendo-te. Provavelmente, na tua situação faria o mesmo. Mas conta-me: a respeito da Margarida há novidades? Voltaste a vê-la ou a falar com ela?

– Não, nem me interessa muito, sinceramente.

– Folgo em ouvir isso, meu caro; nem imaginas quanto! Bem sabes que eu nunca fui muito com a cara dela e muito menos achei bem que andasses por aí a chorar pelos cantos depois que acabou; ainda para mais porque foste tu quem acabou e um homem tem de saber o que quer da vida, não é andar para a frente e para trás e nunca mais tomar uma decisão.

– Pois, mas tu sabes como eu sou: decisões não são comigo. Eh, pá! Mas não desconverses, que não foi para falar da Margarida que cá vieste! Explica-me lá essa tua história de saias.

Ricardo ficou calado por uns longos segundos, pensando no que haveria de dizer. Sabia que era agora ou nunca, mas não sabia como começar. Levantou-se e deu dois passos; voltou para trás e tornou a sentar-se. Engoliu em seco, inspirou fundo e disse:

– Na verdade, a minha história de saias não tem muito que se lhe diga, mas gostava de te fazer uma pergunta – mal acabou de pronunciar estas palavras, arrependeu-se imediatamente: “Não podias ter-te comprometido mais explicitamente.”

1 comentário:

nokturnna disse...

Vá... Continuem!
Estou ansiosa pelo resto!