terça-feira, 9 de outubro de 2007

41

Hesitante, Ricardo dirigiu a Filipe um olhar carregado de nervosismo e dúvida. Eram amigos há anos e sabia que podia confiar nele como em si mesmo, mas algo o travava. Como lhe contaria que havia conhecido Carla daquela forma imprevisível e que, de modo ainda mais inesperado, se havia apaixonado por ela em menos de nada? Como explicaria ainda que Carla tinha um filho que era assustadoramente parecido com Miguel e que desconfiava que pudesse ser de facto filho do seu melhor amigo? Foi trazido à realidade pela voz firme de Filipe:

– Não desconverses, meu! Por que te lembraste disto agora e, pior, por que falaste comigo ao telefone como se disso dependesse a tua vida?

– Eia, que exagero! Não é assim nada de especial. – Optou por meia verdade: – É que encontrei a Freira por acaso (daí saber que ela se chama Carla e achar que já não temos idade para continuar a usar essas alcunhas idiotas dos tempos da escola) e depois pus-me a recordar os tempos em que ela andou no Colégio e fiquei com a pulga atrás da orelha a respeito dessa festa. Como o Miguel é o meu melhor amigo, quis tirar isso a limpo e, como sabia que tu estavas lá também e também conheces o Miguel, achei que talvez te lembrasses, visto que da memória dele se pode esperar tanto como da minha...

Filipe não disse nada, mas o seu rosto deixou transparecer um certo cepticismo. Para evitar mais perguntas, Ricardo atirou:

– Agora conta-me tu a tua viagem lá pela Escandinávia! E fala-me das suecas, pá! Fala-me das suecas!

– Olha, deixa-me que te diga que estes suecos são doidos...

– Então? – admirou-se Ricardo.

– Aluguei um carro para ir para a sede da empresa. Em conversa, disse ao homem que tinha de ir até Oskarshamn.

– Aonde!? – estranhou Ricardo.

– É a terra onde fica a sede lá da empresa com que estive a negociar. Mas pronto, eu digo-lhe que tenho de lá ir e responde-me ele: “vai gostar muito; o percurso tem uma natureza muito bonita”. E durante as cinco horas de viagem para cada lado tudo o que vejo são árvores e mais árvores à direita e à esquerda!

– Linda paisagem, sem dúvida! – riu-se Ricardo. – Olha, queres comer qualquer coisa? Nem te ofereci nada...

– Não, não, obrigado! Quero é que me contes a verdade, porque não gostei do teu tom de voz na mensagem que me deixaste no atendedor de chamadas, não gostei da tua expressão quando nos encontramos há pouco e estou a gostar muito pouco do facto de estares a tentar enrolar-me. Fala de uma vez, Ricardo!

Aí, Ricardo percebeu que não tinha mais por onde fugir. Fixou o olhar na janela e começou a falar.

– Aqui há uns tempos, pouco mais de dois meses, tive um acidente de carro; uma coisa estúpida. Eram dez da manhã e estava furioso porque tinha tido mais uma daquelas discussões absurdas com a Beatriz. De tão distraído que estava, nem me dei conta de que o semáforo tinha ficado vermelho e não parei. Quer dizer, parei contra o carro dela; foi então que a conheci. Era bonita, de uma beleza simples, mas confesso-te que, na altura, só vi nela uma oportunidade de engate, nada muito sério; até comentei isso com o Miguel, para ver se o fazia esquecer a Margarida. A Carla... – percebendo que Filipe se preparava para dizer algo, Ricardo pediu-lhe que o deixasse terminar de falar, e continuou: – Como a culpa do acidente tinha sido inegavelmente minha, assumi toda a responsabilidade naquele momento e trocamos os nossos contactos para resolvermos as questões referentes ao acidente. No próprio dia convidei-a para jantar, mas acabámos por combinar para o dia em que o Miguel teve aquele acidente no qual se partiu todo, e acabei por deixá-la pendurada por causa disso. Quando consegui jantar com ela descobri que afinal sentia algo mais por ela. Nos dias seguintes, não me saía da cabeça o tempo todo! Tinhas de conhecê-la para perceber... Fiquei completamente encantado. Só que entretanto descobri também que ela tem um filho de seis anos, o Tomás, um miúdo incrível, muito esperto e vivo... E muito parecido com o Miguel... Entendes agora o porquê de toda a minha preocupação e curiosidade? Pelas minhas contas o Tomás foi concebido por altura daquela malfadada festa de Carnaval – dizendo isto, Ricardo calou-se e desviou o olhar da janela, para fixar o rosto de Filipe.

Ao olhar o amigo, Ricardo percebeu que Filipe estava confuso e estupefacto com o que acabar de escutar.

– Então estás a dizer-me que achas que o Miguel pode ser o pai do filho da Freira? Desculpa... da Carla? E estás a dizer-me que estás apaixonado por ela? Meu... estás metido numa embrulhada descomunal! O que é que vais fazer, Ricardo? – perguntou Filipe em jeito de conclusão.

Ricardo sentia-se perdido. Não tinha certezas, nem poderia tê-las. Mas tudo indicava que Tomás era mesmo filho de Miguel.

– Não sei, Filipe. Juro-te que não sei. Se o Miguel for mesmo o pai do Tomás, tem direito de saber. Se eu lhe conto, perco a Carla para sempre. Estou, literalmente, entre a espada e a parede... – dizendo isto, deixou-se cair novamente no sofá.

– Nem sei que te diga, meu amigo. Não queria estar na tua posição. Mas olha, se queres um conselho, fala com ela primeiro. Se se confirmar, então falas com ele. É muito arriscado dizer qualquer coisa ao Miguel sem certezas. Nunca se sabe como ele pode reagir e, se não for verdade, crias uma confusão tremenda.

– Tenho de pensar muito bem no que vou fazer. Se bem que, juntando as peças todas do puzzle, não me parece restarem muitas dúvidas. As minhas suspeitas confirmam-se um bocadinho mais a cada dia que passa. O Tomás é mesmo filho do Miguel. Porra...

1 comentário:

Anónimo disse...

Espectacular! Estou sem palavras...
Continuem, estou ansiosa!