terça-feira, 21 de agosto de 2007

27

Margarida, entretanto, continuava sentada na esplanada do café, sozinha e atordoada com o que acabara de ouvir. As palavras de Mário ainda reverberavam como um estranho eco nos seus ouvidos, como se ele tivesse falado numa língua que ela não conseguisse compreender.

– Margarida, precisamos de conversar – dissera-lhe ele, ignorando toda a história que ela lhe contara detalhadamente, acto que a colocara logo de sobreaviso, pois não era hábito de Mário cortar assim uma conversa para mudar tão bruscamente de assunto, e muito menos com aquele ar solene com que anunciara que precisavam de conversar. Margarida pressentira-o, não sabia bem como nem porquê, mas pressentira que algo de muito ruim estava para acontecer e não se enganara. A medo, ignorando em absoluto, mas como como que já sabendo de antemão o que iria passar-se, retorquira um simples “sim, diz” com total indiferença, como se nada do que Mário tivesse para lhe dizer pudesse afectá-la minimamente.

– Não podemos continuar juntos – atirara ele de chofre, à queima-roupa, sem quaisquer contemplações e sem sequer pestanejar. No seu olhar, Margarida recordava agora uma frieza que não só não lhe conhecia, como nem sequer sabia explicar, como se a separação fosse algo há muito premeditado e minuciosamente planeado, como se não lhe custasse minimamente expulsá-la assim da sua vida.

Margarida não lhe perguntara porquê. Aliás, não dissera nada, nem se lembrava das razões que ele lhe dera, se é que lhe dera alguma. Devia ter dado; afinal, não se acabava uma relação que, ainda que curta, tinha gerado – ou estava a gerar, dependendo do ponto de vista – um filho sem dar uma explicação, um motivo qualquer, alguma coisa que acontecera, que Margarida dissera ou fizera que não lhe agradara, ou que simplesmente deixara de gostar dela, mesmo isso sem outras elaborações seria aceitável. Devia ter dado todos os motivos e mais alguns, provavelmente muito plausíveis e perfeitamente compreensíveis, mas Margarida não conseguia lembrar-se dum só. Naquele momento, os sentimentos dentro de si andavam à deriva.

Diz-se que só se dá valor ao que se tem depois que se o perde; estaria porventura isso a passar-se com Margarida? Há pouco mais de vinte e quatro horas, estivera em casa de Ricardo chorando a perda de Miguel, mas agora só conseguia pensar em todos os bons momentos que passara ao lado de Mário nos três meses e alguns dias em que estiveram juntos e no filho que ele lhe dera. Sentia-se dividida e, o que é pior, sentia-se desorientada, como numa encruzilhada sem saber que caminho seguir.

Deixou-se estar mais um pouco na esplanada. Veio-lhe à memória a tal lei da acção-reacção que lera na revista e não pôde deixar de se sentir mais triste ao pensar que as suas acções ultimamente foram premiadas com reacções contrárias às que desejaria. Fechou os olhos por um momento, mas o ruído duma ambulância a aproximar-se fê-la reabri-los rapidamente e lembrar-se de Miguel; quem sabe não teria sido naquela mesma ambulância que ele fora levado ao hospital? Afastou o pensamento: “Do que tu te foste lembrar, rapariga! Sempre tens cada ideia mais peregrina!” Miguel, Mário, Mário, Miguel... Reparou então na coincidência da primeira letra dos três nomes: Miguel, Mário e Margarida. “Mas que raio de ideias que estás a ter! Levanta-te e vai mas é para a faculdade, que daqui a pouco tens aulas.”

Assim fez; apanhou o autocarro e saiu na paragem em frente à faculdade. Pelo caminho, enjoou; sempre lhe acontecia isso quando viajava sentada de costas. “Quando é que aprendes a não te sentares nestes bancos?”, recriminou-se, sabendo todavia da inutilidade de tal acto de contrição, porquanto voltaria a fazer o mesmo na próxima oportunidade, tal era a preguiça de viajar de pé. Bom era o metro; aí nunca enjoava. Ou então ir de carro; não tinha carta, mas sempre andava à boleia. Gostava do carro de Miguel; dizia-lha muitas vezes, meio a brincar, meio a sério, que, quando tirasse a carta, compraria um carro igual ao dele, ou mesmo o seu em segunda mão, se ele resolve trocar por um novo. O carro de Mário não lhe agradava tanto, pois fazia-a sentir-se um pouco esmagada lá dentro. Era um carro pesado. Mário falava dele com satisfação, quase orgulho, cavalos para aqui, cilindrada para ali, dos zero aos cem em não sei quantos segundos, binário isto e aquilo; Margarida não percebia nada, mas gostava de ouvi-lo.

Entrou na faculdade com a cabeça inundada por Mário e Miguel, que competiam entre si pela maior fatia do seu pensamento, nem se apercebendo de não circulava ninguém pelos corredores. Só quando chegou à porta do anfiteatro e a encontrou fechada é que se lembrou que era a semana da Queima das Fitas e que não havia aulas. “Para o que havia de dar-me: vir para a faculdade sem ter aulas... Estou mesmo desnorteada”, pensou.

Mas logo o mesmo pensamento tomou a sua mente de assalto. Aquilo que lhe parecera tão certo já não o era de novo. Depois de falar com Ricardo, Miguel era o homem da sua vida e Mário uma brincadeira destinada a fazer-lhe ciúmes. No entanto, agora que Mário lhe dissera, sem contemplações, que não podiam continuar juntos, sentia a sua falta, a segurança que lhe dava aninhar-se nos seus braços, a experiência dum homem mais maduro, deixar-se guiar por ele.

Saiu da faculdade pela porta por onde entrara e parou para pensar, ou talvez para tentar esvaziar a mente de pensamentos, já não sabia bem. Quando pensava que tinha conseguido e ia ter um momento de paz, uma outra dúvida assolou-a:

– E o meu filho? – murmurou.

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