terça-feira, 30 de outubro de 2007

47

A mão de Ricardo ainda segurava a sua, quando Carla a apertou suavemente. Então, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, ela começou a falar:

– Fui da turma do Miguel do nono até meio do décimo primeiro ano. Eu era o patinho feio do Colégio: era magrinha, desengonçada, e não tinha cuidado com o que vestia. Para tu veres, nesse tempo todo só fiz uma amiga, a Francisca, e foi já no início do décimo primeiro. Mas antes disso, ainda antes do fim do nono ano, se não estou em erro, o teu amigo achou por graça colocar-me uma alcunha, a “Freira”, e a coisa pegou. A princípio, ainda disfarçavam, chamavam-me pelo nome à minha frente e referiam-se a mim pela alcunha quando eu não estava, mas a certa altura passou mesmo a ser declarado, e das poucas vezes que ele se dirigia a mim chamava-me aquilo. Éramos os melhores alunos da turma, e havia uma certa rivalidade, embora que disfarçada, mas ele ganhava na maioria das vezes. Ainda assim, e sem saber muito bem como, apaixonei-me por ele. O Miguel era o sonho de todas a raparigas do Colégio, e eu não era excepção. –, Dizendo isto, Carla fez uma pausa e, ao olhar Ricardo nos olhos, apercebeu-se de como tudo aquilo o estava a magoar, mas sabia que já não havia volta a dar e teria de ir até ao fim, pelo que continuou: – Foi na Festa de Carnaval do décimo primeiro ano que tudo aconteceu. Estavam todos eufóricos, era a primeira festa fora do Colégio que nos era permitido fazer. Eu não queria ir, mas a Francisca insistiu tanto que lá acabei por ceder. Quando lá cheguei fiquei maravilhada. Tinha dezasseis anos e nunca havia entrado numa discoteca. Bebi um pouco, e, como não estava habituada, fiquei logo demasiado alegre. Dancei muito, e já quase no fim da festa ouvi-o chamar o meu nome. Até àquele momento ele nunca tinha dito o meu nome; eu tinha sido sempre “a Freira”. Estendeu-me a mão e eu, sem saber muito bem porquê, estendi-lhe a minha. Levou-me para fora dali e beijou-me e eu nem queria acreditar que aquele com quem todas as raparigas do Colégio sonhavam estava ali comigo, a beijar-me! Senti-me a rapariga mais sortuda e feliz do mundo. Fui uma tonta e deixei-me ir. Tenho consciência de que a culpa não foi só da bebida e não penses que me furto às minhas responsabilidades. No dia seguinte fui falar com ele, mas ele disse-me que não se lembrava de nada. Fiquei desfeita, mas o pior ainda estava para vir um mês e meio depois: estava grávida e o Miguel nem se lembrava do que tinha acontecido entre nós. Os meus Pais foram fantásticos e eu fui viver para Lisboa e em Novembro o Tomás nasceu. O resto já tu sabes.

O silêncio caiu sobre eles como um manto negro e pesado que os sufocava. Foi Ricardo quem o quebrou:

– Ele tinha o direito de saber… Ainda tem. E o Tomás tem o direito de conhecer o Pai, não achas?

– Acho, mas tenta colocar-te no meu lugar. Eu tinha de proteger o meu Filho. O Miguel ia rejeitá-lo; ele não se lembrava de nada. Tu conhece-lo melhor do que eu; sabes bem como a opinião dos amigos era importante para ele. Achas mesmo que ele iria assumir que tinha ido para a cama com a “Freira” e que ia ser Pai do Filho dela??? Ora, Ricardo, nem tu acreditas nisso… – e dizendo isto, deixou-se cair novamente nas almofadas.

– Talvez tenhas razão, mas eu não sei o que pensar. O Miguel é o meu melhor amigo e o Tomás é a cara dele e tu és a mulher que eu amo… O que é que eu faço, Carla? Dizes-me o que é que eu vou fazer, para além de enlouquecer? – o desespero na voz de Ricardo era assustadoramente doloroso.

Carla voltou a pegar na mão de Ricardo e este, num impulso, abraçou-a com força, como se tivesse receio de a perder no momento em que a soltasse.

– Não te quero perder… – sussurrou-lhe ele ao ouvido.

– Eu também não te quero perder, Ricardo. Mas também não quero perder o meu Filho… – respondeu-lhe Carla, perguntando de seguida – Vais contar-lhe, não vais?

Ricardo tapou o rosto com as mãos e sentou-se na cama, baixando de seguida a cabeça. Carla aproximou-se e percebeu que ele já não era, naquele momento, capaz de conter a dor e que dos seus olhos brotavam lágrimas de desespero. Com cuidado e carinho abraçou-o e choraram juntos. Quando se afastaram, Ricardo limpou o rosto, olhou-a com uma expressão indecifrável, como se estivesse a despedir-se dela e disse:

– Não sei ainda o que vou fazer. Tenho de pensar muito bem. Depois ligo-te, mas agora tenho de ir arejar a cabeça e colocar as ideias no lugar. Desculpa. – levantou-se e dirigiu-se à porta da rua.

Carla seguiu Ricardo e quando estava à porta de sua casa ele olhou-a e abraçou-a mais uma vez, beijando-a de uma forma intensa e apaixonada, e saindo de seguida. Quando a porta se fechou, Carla sentou-se no chão e chorou até que as lágrimas secassem. Acabava de perder o homem que amava e tinha plena consciência disso.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

46

Eram quase 13 horas e Ricardo devia estar mesmo a chegar. Carla sentia-se ansiosa. Qualquer coisa na mensagem de Ricardo a havia deixado inquieta. O que teria acontecido para que a palavras dele fossem tão distantes e frias? Não conseguia cogitar o que quer que fosse que pudesse justificar tal atitude. Estava confusa. Se, por um lado, queria afastar-se de Ricardo e parecia estar perante a oportunidade de que estava à espera, por outro sentia que poderia estar a perdê-lo naquele entretanto e isso deixava-a assustada. Aquele homem parecia significar mais para ela do que havia imaginado.

Sentiu o telemóvel vibrar e viu o nome dele a piscar no visor. Já estava pronta e não se demorou a descer. Entrou no carro e ficou expectante. Ricardo deu-lhe um beijo suave nos lábios, e arrancou. Ficaram em silêncio todo o caminho. Andaram imenso tempo e Carla teve a sensação de andar em círculos. Parecia que Ricardo não sabia muito bem para onde ir. De qualquer forma, não se admirou quando pararam à porta de sua casa.

- Já deves ter percebido que precisamos de conversar sobre um assunto muito sério. Depois de andarmos às voltas percebi que o único local onde poderíamos conversar seria em tua casa. E já vais perceber porquê. - disse Ricardo, quebrando, finalmente, o silêncio, para continuar de seguida, - Só queria pedir-te que mantivesses o Tomás longe de casa. Vamos ter uma conversa de adultos e não gostava que ele ouvisse. Gosto muito dele, sabias? -, e dizendo isto acariciou-lhe o rosto e beijou-a mais uma vez.

Mesmo sem perceber o porquê daquele pedido estranho, Carla telefonou ao Pai pedindo-lhe que fosse buscar Tomás ao colégio, dizendo que passaria em sua casa para o ir buscar, mais tarde. Saíram do carro e subiram. Quando Carla fechou a porta atrás de si, viu que Ricardo a olhava de uma forma estranha e intensa. Aquele não era o homem por quem se havia apaixonado. O seu olhar estava triste e, quase se arriscava a pensar que, magoado, também.

E Ricardo começou a falar.

- Tenho pensado muito nos últimos tempos. Podia estar aqui com rodeios, explicar-te os porquês das minhas dúvidas, dizer todas as coisas que me dei a trabalho de ensaiar na última noite, mas só há uma forma de saber o que quero, de esclarecer de uma vez as dúvidas que me assolam, e de perceber se sou, ou não, um homem livre para te amar. -, dizendo isto Ricardo respirou fundo e formulou a pergunta, - O Tomás é filho do Miguel?

Carla sentiu que o chão se abria sobre os seus pés. Parecia que um buraco negro a sugava para a escuridão imensa do infinito. Sentiu a sua mente ser invadida por uma quantidade indescritível de perguntas e depois o nada. Deixou de ver, deixou de ouvir, perdeu as forças nas pernas, e desmaiou.

Quando acordou estava deitada na sua cama, com Ricardo a seu lado, a segurar-lhe na mão.

- Estás bem? -, perguntou-lhe ele num tom preocupado.

- Estou um pouco tonta, mas estou bem. Ricardo… -, preparava-se para dizer algo mais, mas Ricardo colocou-lhe o dedo sobre os lábios.

- Descansa. Conversamos depois. -, disse-lhe ele.

- Não. Temos de conversar agora. Fizeste-me uma pergunta directa, e eu tenho de te responder. Mas peço-te que me ouças até ao fim, e que não me julgues antes de eu ter terminado. -, quando Carla disse estas palavras, Ricardo percebeu o que se lhes seguia e foi com uma dor imensa no peito que escutou as que de seguida saíram da boca da mulher que amava, - Sim, o Tomás é filho do Miguel…

terça-feira, 23 de outubro de 2007

45

Inquieto demais para conseguir voltar a adormecer, Miguel levantou-se da cama e dirigiu-se à cozinha. Precisava de um copo de leite quente para aclamar a inquietude que havia surgido dentro de si ao pensar em Margarida. Aqueles pesadelos que o atormentavam e o faziam colocar em causa que tipo de pessoa seria por os ter já há muito haviam desaparecido. E, por isso mesmo, há algum tempo que não se demorava a pensar nela. Mas aquela inquietude inesperada incomodava-o.

“Chama-se consciência, meu caro”, acusou-se a si mesmo, continuando: “Foste rude e bruto na forma que falaste com ela e agora pesa-te a consciência. Essa é que é essa.”. “Isso é um disparate!”, respondeu a si próprio, “Ela merecia ouvir aquilo tudo e muito mais. A Margarida deixou-me quase desfeito e tudo o que lhe disse foi pouco, porque no fundo sei que não a magoei nem um terço do que ela me magoou a mim. Se voltasse atrás fá-lo-ia novamente.”. No mesmo instante que pensou aquelas palavras, Miguel sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. “Estou a ficar doido...”, pensou para consigo mesmo antes de beber o seu copo de leite e regressar ao quarto para mergulhar, de novo, nos lençóis.

As horas passaram e quando Miguel se deu conta já era de manhã. Pegou no telemóvel e telefonou a Ricardo.

- Bom dia! Oh Ricardo, almoça comigo! Acho que estou a ficar doido... – disse Miguel assim que Ricardo atendeu o telemóvel.

- Não sei se posso… Tenho uma questão muito importante para resolver, mas podemos jantar. – respondeu Ricardo, sem sequer lhe dar hipótese de replicar.

- Está bem. Já que o que tens para resolver é assim tão importante, eu espero até ao jantar. Mas não te cortes, Ricardo, preciso mesmo de conversar contigo. À tarde telefono-te para combinarmos as horas e o sítio. Até logo. – dizendo isto, desligou o telemóvel, pensando para consigo: “Este gajo está sempre com a cabeça metida no trabalho. Então nos últimos tempos tem sido abusivo.”

Em sua casa, Ricardo olhava para o telemóvel e tentava decidir se telefonava naquele momento a Carla ou se deixava para mais tarde. Resolveu enviar-lhe uma mensagem escrita, não fosse dar-se o caso de ela ainda estar a dormir.

Quando o telemóvel deu sinal de nova mensagem, Carla olhou-o meio a medo: só podia ser Ricardo. Tinha prometido a si mesma na noite anterior que não iria permitir mais nenhum tipo de contacto com ele, só que não foi capaz de resistir ao impulso de ler a mensagem. No entanto, ao fazê-lo tremeu, não pelas palavras doces e apaixonadas de Ricardo, mas sim pela frieza e secura das mesmas.

“Precisamos de conversar. Vou buscar-te a casa às 13hs para almoçarmos. R.”

De modo automático, sem pensar no que estava a escrever, Carla respondeu-lhe da mesma forma seca e fria: “Combinado. Até logo.”

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

44

"Mas o que é que me deu? Só posso estar a perder completamente a noção da realidade. Isto não pode ser… Não posso voltar a vê-lo. Ceder a impulsos nunca foi o meu forte, e sempre que o fiz as coisas não correram bem. Não pode ser”, pensava Carla de si para consigo mesma enquanto abria a porta do prédio, depois da despedida de Ricardo, que a trouxera de volta depois do encontro sobre o Rio.

Sentia que havia cedido a uma fraqueza, termo que, em boa verdade, usava para se convencer a si mesma de que o que sentia por Ricardo nada mais era do que uma simples atracção física. Era impensável, sequer, considerar a hipótese de que se havia apaixonado por ele. Não podia ser. Os últimos dois dias tinham sido uma loucura, momentos que sabia não poderem repetir-se. Só não sabia até quando teria força para resistir à vontade de voltar a perder-se nos braços de Ricardo e esquecer o mundo.

Sentia-se tão perdida e tão sozinha!

Já em casa, e depois de espreitar Tomás, que dormia descansado e tranquilo, dirigiu-se à sua casa de banho, despiu-se, abriu a porta da cabine de duche e entrou. Já lá dentro, abriu a água quente e deixou que ela escorresse sobre o seu corpo, como se quisesse apagar da sua alma tudo o que sentia. Com a água a escaldar a escorrer-lhe pelo corpo, Carla fechou os olhos e deixou-se levar pelas recordações. Retrocedeu no tempo e reviveu, por breves instantes, a festa de Carnaval e tudo o que se lhe seguiu. Depois pensou em Ricardo e chorou. À medida que o conhecia mais, ele ia derrubando as suas muralhas e fazendo com que o sonho de ser feliz e construir uma família maior ganhasse contornos de realidade. Ricardo e Tomás pareciam entender-se às mil maravilhas, como se fossem pai e filho, mas não eram. O pai de Tomás era Miguel e essa verdade jamais a deixaria ser feliz com Ricardo. Nesse instante percebeu que o que sentia por ele não poderia, simplesmente, ser vivido.

Saiu do duche mais calma e com a certeza de que a decisão correcta para todos só poderia ser aquela. Quando chegou ao quarto olhou para o telemóvel e viu que tinha uma mensagem escrita. Pensou em não abrir. Sabia ser de Ricardo. “Qual é o mal?”, questionou-se a si mesma, “Afinal não vou voltar a vê-lo. É uma espécie de despedida…”, tentou convencer-se a si mesma.

“Gosto muito de ti!!! E não te quero perder… Beijo enorme e dorme bem ***”

Ao ler a mensagem de Ricardo, sentiu-se ficar sem forças e deixou-se cair em cima da cama. Era imperativo afastar-se. Não podia voltar a vê-lo. Só não sabia como lidar com isso.

Em sua casa, Ricardo debatia-se com um dilema semelhante.

“Só posso estar a ficar doido. Só posso. Depois da conversa com o Filipe, como é que eu me fui deixar ir numa destas. Já não sou nenhum puto. Tenho é de ter juízo, deixar-me de paixões e pensar no que é realmente importante. O Miguel é o meu melhor amigo. O Tomás é, quase de certeza, filho dele. E se essa ténue dúvida se consolidar em certeza, ele tem o direito de saber que tem um filho fantástico como o Tomás. Amanhã vou falar com a Carla. Tem de ser. Ela vai ter de me contar a verdade. E depois, consoante o que resultar da nossa conversa, vou falar com o Miguel.”

A poucos quilómetros dali, Miguel acordava inquieto. No dia seguinte voltaria ao trabalho, e sentia-se ansioso para regressar ao “seu pequeno mundo”, como Margarida costumava chamar ao seu gabinete na empresa. Pensou em Margarida e sentiu um aperto no peito. Há algum tempo que não sabia nada dela.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

43

Ricardo esqueceu a conversa com Filipe, as dúvidas que pairavam sobre aquela relação, esqueceu tudo e apenas correspondeu ao beijo de Carla, envolveu-a nos seus braços e os dois assim permaneceram durante alguns minutos, apenas se beijando e esquecendo o mundo à sua volta.

Quando os seus lábios finalmente se apartaram, Ricardo encaminhou Carla para o seu carro enquanto esta lhe falava das saudades que tivera desde a última vez que o vira.

– Mas foi ontem ao jantar! – exclamou Ricardo.

– E então? Já se passaram mais de vinte e quatro horas! – retorquiu Carla, metendo-lhe o braço no seu.

– Sabes que mais? Também morri de saudades tuas... – disse Ricardo com sinceridade.

Carla abraçou-se a si e voltaram a beijar-se. Ricardo abriu-lhe a porta do carro e, depois de Carla entrar, ele contornou o carro e entrou para o lado do condutor. Girou a chave na ignição e arrancou.

– A cidade não é bonita, à noite? – perguntou Carla, enquanto espreitava pela janela.

– De noite ou de dia, o Porto é sempre magnífico. E então quando estamos na companhia certa... – respondeu Ricardo e a escuridão dentro do carro não deixou ver Carla a corar.

Desceram até à Ribeira e Ricardo estacionou no Parque do Infante. Saíram do Parque e Carla perguntou onde iam. Ricardo não respondeu. À insistência de Carla, murmurou apenas ao seu ouvido, enquanto o seu braço esquerdo a prendia pela cintura:

– É uma surpresa...

Virando as costas à estátua do Infante D. Henrique, desceram até junto do Rio Douro e junto a ele caminharam, atravessando a Praça do Cubo, como é conhecida, até quase junto à Ponte Luís I. Debaixo das duas colunas que marcam o local onde uma vez existiu a Ponte Pênsil, desceram umas escadas de madeira e estavam num terraço em pedra mesmo sobre o Rio, onde existia uma esplanada. Disse então Ricardo:

– Achei que ias gostar de tomar café suspensa sobre a água. Acertei?

– Oh, Ricardo! Isto é maravilhoso! Estamos mesmo no meio do Rio! E a Ponte mesmo aqui ao lado!

Beijaram-se novamente e seguidamente caminharam até à extremidade da esplanada, ocupando a mesa mais afastada da margem e mais junto à Ponte.

A empregada era bastante gorda, mas simpática e bastante eficiente. Trouxe-lhes as bebidas em menos de nada e retirou-se, deixando a esplanada vazia para além de Ricardo e de Carla. Esta levantou-se e desculpou-se, dizendo que precisava de ir ao quarto de banho.

Enquanto Carla se encontrava no quarto de banho, a conversa da tarde com Filipe veio de novo à memória de Ricardo, mas este afastou-a. Não ia deixar essas preocupações estragar aquele momento, que queria só para si e partilhado apenas com Carla. “Estarei a fazer a coisa certa?”, questionou-se. Não teve tempo de encontrar a resposta, porque entretanto Carla reapareceu e Ricardo, observando-a enquanto ela atravessava a esplanada por entre as mesas vazias, sentiu-se levitar acima do chão enquanto se esvaziava das preocupações que o tinham assolado ainda há uns segundos. Era esse o efeito inebriante de Carla. Não havia dúvidas: estava apaixonado.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

42

Caiu um silêncio algo incómodo entre os dois. Filipe não sabia o que dizer e Ricardo estava mergulhado nos seus pensamentos. Lembrou-se do bilhete que escrevera a Carla no bar assinando com o nome de Miguel e viu que também isso encaixava: “Ela não lhe ligou porque não quer voltar a envolver-se com ele depois da história do Tomás.”

– Faz sentido.

– Que disseste? – indagou Filipe.

– Nada, nada! Estava aqui a pensar alto...

– Pois então, já que já fiz os meus estragos, acho que é a minha deixa para ir embora; a não ser que queiras que fique.

– Não, não é preciso, Filipe. Eu agora preciso mesmo dum tempo para pensar no que vou fazer à minha vida. Obrigado por tudo.

Levantaram-se e Ricardo acompanhou Filipe à porta do apartamento. Depois de Filipe sair, Ricardo correu ao telefone e marcou o número de Carla:

– Estou? Olá, Ricardo! – atendeu ela do outro lado, com voz jovial.

– Olá, Carla. Tens um tempo para mim hoje? – Ricardo esforçou-se por não deixar transparecer na voz o que lhe ia na alma.

– Hum... Depende de para que for... – notou-se uma certa marotice na sua voz.

– Para jantar é capaz de já estar um bocado em cima da hora... Tomamos um café depois? Onde tu quiseres – disse Ricardo rapidamente.

– Pode ser, mas escolhe tu o sítio.

– Então vou fazer-te uma surpresa...

Ricardo desligou então o telefone e foi para a cozinha preparar o jantar, mas a sua cabeça continuou na sala a ouvir as palavras de Filipe. “Eles saíram juntos da festa e só Deus sabe o que fizeram a seguir.“ Cortou-se enquanto preparava a salada. “Meu... estás metido numa embrulhada descomunal!” Queimou-se com a tampa da panela. “O que é que vais fazer, Ricardo?”

– Não sei! Não faço ideia do que fazer à minha vida!!!

Deu-se conta de que estava a gritar para os azulejos brancos rectangulares que cobriam as paredes da cozinha e deu-se também conta de que lhe cheirava a queimado:

– O bife! – exclamou, saltando para a frente do fogão. Apagou-o imediatamente e tirou a sertã de cima do disco, mas a perda era já total. Aborrecido e sem vontade de grelhar outro bife, saiu para jantar no restaurante da esquina.

Ricardo chamava-lhe o restaurante da esquina por nunca se lembrar do nome do estabelecimento e por este, de facto, ficar na esquina do prédio ao lado do seu. No mesmo ambiente em tons de vermelho serviam-se pratos da cozinha italiana e da argentina. O balcão, ao fundo, era de madeira castanha escura e tinha um empregado barbudo e não muito simpático, mas comia-se bem, rápido e barato, pelo que era uma boa alternativa para quando Ricardo não se sentia com vontade de cozinhar e não queria gastar muito tempo a jantar. As mesas eram quadradas e estavam cobertas com toalhas brancas. Apenas uma, para além daquela, junto à porta, onde Ricardo se sentou, estava ocupada, por um casal que ele reconheceu de se cruzarem no elevador do prédio onde todos moravam.

“Hoje em dia, é possível conhecer pessoas do outro lado do mundo, mas não conhecemos os nossos próprios vizinhos, que moram em frente a nós ou, no máximo, a um andar de distância. E, se os conhecemos, é sinal de que nos pegámos com eles por questões do condomínio. Assim vai a vida moderna...” Para afastar os pensamentos depressivos, Ricardo concentrou-se na ementa e acabou por pedir um bife igual ao que tentara cozinhar em casa. Depois de efectuar o pedido, continuou a olhar distraidamente para a ementa, mas a sua ideia estava de novo com Carla, donde saltitava periodicamente para Tomás e Miguel.

Depois de jantar, regressou a casa, trocou de roupa e eram horas de sair para ir ter com Carla. Ainda não tinha decidido o que ia dizer-lhe quando chegou à porta do seu prédio e tocou à campainha. Ela demorou pouco a descer e, mal abriu a porta, abraçou Ricardo e beijou-o intensamente.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

41

Hesitante, Ricardo dirigiu a Filipe um olhar carregado de nervosismo e dúvida. Eram amigos há anos e sabia que podia confiar nele como em si mesmo, mas algo o travava. Como lhe contaria que havia conhecido Carla daquela forma imprevisível e que, de modo ainda mais inesperado, se havia apaixonado por ela em menos de nada? Como explicaria ainda que Carla tinha um filho que era assustadoramente parecido com Miguel e que desconfiava que pudesse ser de facto filho do seu melhor amigo? Foi trazido à realidade pela voz firme de Filipe:

– Não desconverses, meu! Por que te lembraste disto agora e, pior, por que falaste comigo ao telefone como se disso dependesse a tua vida?

– Eia, que exagero! Não é assim nada de especial. – Optou por meia verdade: – É que encontrei a Freira por acaso (daí saber que ela se chama Carla e achar que já não temos idade para continuar a usar essas alcunhas idiotas dos tempos da escola) e depois pus-me a recordar os tempos em que ela andou no Colégio e fiquei com a pulga atrás da orelha a respeito dessa festa. Como o Miguel é o meu melhor amigo, quis tirar isso a limpo e, como sabia que tu estavas lá também e também conheces o Miguel, achei que talvez te lembrasses, visto que da memória dele se pode esperar tanto como da minha...

Filipe não disse nada, mas o seu rosto deixou transparecer um certo cepticismo. Para evitar mais perguntas, Ricardo atirou:

– Agora conta-me tu a tua viagem lá pela Escandinávia! E fala-me das suecas, pá! Fala-me das suecas!

– Olha, deixa-me que te diga que estes suecos são doidos...

– Então? – admirou-se Ricardo.

– Aluguei um carro para ir para a sede da empresa. Em conversa, disse ao homem que tinha de ir até Oskarshamn.

– Aonde!? – estranhou Ricardo.

– É a terra onde fica a sede lá da empresa com que estive a negociar. Mas pronto, eu digo-lhe que tenho de lá ir e responde-me ele: “vai gostar muito; o percurso tem uma natureza muito bonita”. E durante as cinco horas de viagem para cada lado tudo o que vejo são árvores e mais árvores à direita e à esquerda!

– Linda paisagem, sem dúvida! – riu-se Ricardo. – Olha, queres comer qualquer coisa? Nem te ofereci nada...

– Não, não, obrigado! Quero é que me contes a verdade, porque não gostei do teu tom de voz na mensagem que me deixaste no atendedor de chamadas, não gostei da tua expressão quando nos encontramos há pouco e estou a gostar muito pouco do facto de estares a tentar enrolar-me. Fala de uma vez, Ricardo!

Aí, Ricardo percebeu que não tinha mais por onde fugir. Fixou o olhar na janela e começou a falar.

– Aqui há uns tempos, pouco mais de dois meses, tive um acidente de carro; uma coisa estúpida. Eram dez da manhã e estava furioso porque tinha tido mais uma daquelas discussões absurdas com a Beatriz. De tão distraído que estava, nem me dei conta de que o semáforo tinha ficado vermelho e não parei. Quer dizer, parei contra o carro dela; foi então que a conheci. Era bonita, de uma beleza simples, mas confesso-te que, na altura, só vi nela uma oportunidade de engate, nada muito sério; até comentei isso com o Miguel, para ver se o fazia esquecer a Margarida. A Carla... – percebendo que Filipe se preparava para dizer algo, Ricardo pediu-lhe que o deixasse terminar de falar, e continuou: – Como a culpa do acidente tinha sido inegavelmente minha, assumi toda a responsabilidade naquele momento e trocamos os nossos contactos para resolvermos as questões referentes ao acidente. No próprio dia convidei-a para jantar, mas acabámos por combinar para o dia em que o Miguel teve aquele acidente no qual se partiu todo, e acabei por deixá-la pendurada por causa disso. Quando consegui jantar com ela descobri que afinal sentia algo mais por ela. Nos dias seguintes, não me saía da cabeça o tempo todo! Tinhas de conhecê-la para perceber... Fiquei completamente encantado. Só que entretanto descobri também que ela tem um filho de seis anos, o Tomás, um miúdo incrível, muito esperto e vivo... E muito parecido com o Miguel... Entendes agora o porquê de toda a minha preocupação e curiosidade? Pelas minhas contas o Tomás foi concebido por altura daquela malfadada festa de Carnaval – dizendo isto, Ricardo calou-se e desviou o olhar da janela, para fixar o rosto de Filipe.

Ao olhar o amigo, Ricardo percebeu que Filipe estava confuso e estupefacto com o que acabar de escutar.

– Então estás a dizer-me que achas que o Miguel pode ser o pai do filho da Freira? Desculpa... da Carla? E estás a dizer-me que estás apaixonado por ela? Meu... estás metido numa embrulhada descomunal! O que é que vais fazer, Ricardo? – perguntou Filipe em jeito de conclusão.

Ricardo sentia-se perdido. Não tinha certezas, nem poderia tê-las. Mas tudo indicava que Tomás era mesmo filho de Miguel.

– Não sei, Filipe. Juro-te que não sei. Se o Miguel for mesmo o pai do Tomás, tem direito de saber. Se eu lhe conto, perco a Carla para sempre. Estou, literalmente, entre a espada e a parede... – dizendo isto, deixou-se cair novamente no sofá.

– Nem sei que te diga, meu amigo. Não queria estar na tua posição. Mas olha, se queres um conselho, fala com ela primeiro. Se se confirmar, então falas com ele. É muito arriscado dizer qualquer coisa ao Miguel sem certezas. Nunca se sabe como ele pode reagir e, se não for verdade, crias uma confusão tremenda.

– Tenho de pensar muito bem no que vou fazer. Se bem que, juntando as peças todas do puzzle, não me parece restarem muitas dúvidas. As minhas suspeitas confirmam-se um bocadinho mais a cada dia que passa. O Tomás é mesmo filho do Miguel. Porra...

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

40

– Oh Ricardo, não sejas anjinho. Então não te lembras do escândalo que foi o simples facto da Freira, que era sempre casa-escola-escola-casa, ter aparecido na festa!?A miúda foi o centro das atenções o tempo todo! Agora soma dois mais dois...

Não foi preciso Filipe dizer mais nada, pois Ricardo completou imediatamente o esquema que o amigo acabava de lhe traçar.

– Mas então, se toda a gente sabia, como é que o Miguel dizia que não se lembrava e ninguém lhe disse que era verdade, lembrando-se ele ou não?

– Agora, sim, fizeste a pergunta certa – respondeu-lhe Filipe. – Como te disse, o Miguel veio falar comigo contando-me o que a Freira...

– Carla – corrigiu Ricardo instintivamente.

– Para mim há-de sempre ser a Freira; nem sei como te lembraste agora de lhe chamar Carla. Mas adiante! O importante para a história é que, por sorte, quando o Miguel ia a sair com a Freira, ou Carla, ou o que quiseres chamar-lhe, houve dois tipos que se pegaram à pancada no meio da pista de dança; não me perguntes porquê, porque acho que nem na altura cheguei a saber (eu estava cá em cima, no varandim). No alvoroço de separá-los e acalmá-los (ou simplesmente observar, que já se sabe que nestas situações há sempre um bando de mirones prontos a espicaçar), o Miguel acabou por sair com a dita cuja relativamente despercebido. Acho que só nós – eu e a malta que estava comigo lá no andar de cima – é que demos conta e, logo a seguir, jurámos não contar nada a ninguém, para não prejudicar a fama do Miguel no Colégio.

– Fama!? – exclamou Ricardo.

– Sim, fama! Já viste o que aconteceria à reputação do Miguel no Colégio se se soubesse que ele tinha saído da discoteca com o camafeu da Freira, a quem, de resto, tinha sido ele o primeiro a dar esse nome!? Claro que hoje isto parece um disparate, mas pensa: para miúdos do Secundário, isto era um assunto gravíssimo!

– Sim, entendo o que queres dizer. Quer dizer que vocês fizeram tudo por abafar a coisa...

– Isso mesmo...

– E conseguiram! Nem eu, o melhor amigo dele, soube de nada...

– Nem ele, o principal implicado, soube de nada, queres tu dizer!

– Hã!? – exclamou Ricardo, intrigado. Filipe explicou:

– O Miguel estava bêbado e, pelo visto, não se lembrava de nada do que se tinha passado naquela noite; pelo menos, não do essencial. De modo que, quando a Freira foi ter com ele num intervalo no primeiro dia depois do feriado, ele não percebeu o que estava a passar-se e não entendeu a atitude dela. Quando ele me contou, eu associei logo tudo, mas também não lhe disse nada. Limitei-me a insinuar que era um pedido de namoro da Freira saído do nada e ele engoliu o isco que nem um peixinho...

– Porquê!? – interrompeu Ricardo.

– Já que ele não se lembrava, não valia a pena estar a remexer na lama, não achas? De modo que o assunto ficou por ali. Eu e a malta que estava comigo na festa e os viu nunca mais falámos nisso e o Miguel até hoje deve continuar sem se lembrar de nada e a achar que a Freira se atirou a ele descaradamente do nada. – Filipe calou-se por uns instantes, mas logo acrescentou: – Mas vamos lá a saber: para que querias saber isto tudo?

Ricardo embatucou. “Conto-lhe a verdade?”, questionou-se. Optou por desviar o assunto:

– De certeza que mais ninguém viu?

– Houve uns rumores no Colégio, mas nós também nos encarregamos de abafá-los. Na altura dissemos que ela lhe tinha pedido boleia e ele tinha dito que sim, ou vice-versa, eu sei lá. Sei que foi uma história mal amanhada, mas o certo é que pegou e a coisa morreu por ali. Mas ainda não respondeste à minha pergunta...

– Qual pergunta? – Ricardo fez-se de desentendido, embora soubesse que não podia continuar o jogo do gato e do rato com Filipe. Mas precisava de ganhar tempo. “Conto-lhe a verdade ou não?”

terça-feira, 2 de outubro de 2007

39

Chegados à porta do apartamento, esperaram uns momentos que Ricardo a abrisse e entraram. Filipe soltou uma exclamação de surpresa.

– Ainda não tinhas cá vindo depois da reforma, pois não? Sabes como é, com a saída da Beatriz, não me apeteceu continuar a olhar para a mesma decoração todos os dias. Esta mudança foi providencial no que toca de esquecê-la. Acredita que não teria sido tão rápido se tivesse continuado a olhar para todos os objectos que faziam parte da nossa vida a dois – explicou Ricardo, continuando depois, sorridente: – Mas diz lá a verdade, ficou giro, não ficou?

– Sim, senhor, ficou muito bem! Contrataste um decorador?

– Qual quê!? – exclamou Ricardo, indignado. – Desenhei eu mesmo e escolhi eu os móveis! A única coisa que não foi feita por mim foi o trabalho propriamente dito, porque não tinha como carregar os móveis cá para cima. E, pronto, também não fui eu quem pintou as paredes.

– Sim, já sei da tua teoria de “cada macaco no seu galho”: tu não pintas paredes e os pintores não administram empresas. Acertei?

Ricardo sorriu:

– Nunca sei se estás a gozar-me ou se concordas comigo.

– Estou a gozar-te, claro! – respondeu Filipe e riram-se os dois. – Mas diz lá o que querias falar comigo, porque eu estou curiosíssimo e também preocupado. Nunca te vi tão apoquentado!

– Primeiro, deixa-me mostrar-te o resto do apartamento; também não tem assim tanto que se lhe diga, e depois sentamo-nos aqui e falamos, pode ser?

Filipe anuiu, pelo que viram rapidamente a nova decoração das quatro divisões que faltavam, incluindo o quarto-de-banho. Em cada uma, Filipe ia comentando o que via. Apreciou as paredes salmão do quarto de Ricardo (“mantiveste uma cama de casal, seu malandro”), o estilo moderno do escritório (“sabes que os ratos ópticos não funcionam sobre mesas de vidro? vais precisar dum tapete para o teu”), a mobília funcional da cozinha (“isto é mesmo mármore ou é a fingir?”; “é mesmo”), terminando, já de volta à sala, por dizer:

– Mas do que eu gosto mesmo é da vista. Ai, o que eu dava para morar em frente ao mar... E então que me querias?

– Senta-te, que eu explico.

Sentaram-se os dois nos sofás novos e Ricardo começou a falar.

– Sabes o Miguel?

– Sei, sim. Já não o vejo há uns tempos; que é feito dele?

– Por acaso, não anda muio bem. Vê lá tu que teve um acidente de carro e partiu-se todo, coitado.

Ricardo contou então por alto o acidente de Miguel e as suas consequências, fazendo o ponto da situação ao estado actual do amigo, mas tendo o cuidado de omitir as causas do mesmo. De qualquer forma, Filipe deu-se por satisfeito com a informação fornecida e não fez mais perguntas. Ricardo prosseguiu então:

– Agora vou puxar pela tua memória, já que a minha não dá para mais... Lembras-te daquela festa de Carnaval no Colégio, quando nós estávamos no décimo segundo?

– Sim, lembro-me, e, para começar, lembro-me de que não foi no Colégio... E também me lembro de por que é que tu não te lembras de mais nada... – os seus lábios contorceram-se num sorriso quase imperceptível à medida que dizia estas palavras.

– Sim, não foi no Colégio, isso ainda sei. O que eu já não sei é o que lá se passou e preciso de que me contes o que saibas a respeito do Miguel.

– Como assim? – estranhou Filipe.

– Oh pá! Indo directo ao ponto: o Miguel curtiu com alguém nessa noite?

– Que raio de pergunta, oh Ricardo! Que é que isso interessa agora, passados tantos anos?

– Interessa muito... Lembras-te da Freira?

Filipe mexeu-se no sofá ao ouvir falar da Freira:

– Oh, se lembro! Alguém esquece essa peça? – dito isto, riu-se, mas o seu risso soou algo desconfortável.

– E então?

– Então o quê?

– O Miguel e ela?...

– Para que queres saber isso agora?

– Porque é importante. Eles curtiram? – esta última pergunta saiu em voz mais alta do que Ricardo desejara.

Filipe estremeceu de novo no sofá, em parte devido à elevação da voz de Ricardo, em parte pelo desconforto que a pergunta lhe causava. Ainda que Ricardo fosse o melhor amigo de Miguel, contar-lhe o que sabia podia mudar muita coisa. “E daí, já passaram tantos anos, a reputação do Miguel já não vai ser prejudicada, como achávamos nós que seria nessa altura... Ai, estas loucuras de adolescente, e eu para aqui ainda todo preocupado em quebrar uma jura, que nem jura foi, a bem dizer, feita com dezassete anos!” Decidiu contar tudo:

– Mais do que isso: saíram juntos da festa e só Deus sabe o que fizeram a seguir. Quer dizer, além de Deus, a Freira também deve saber, porque estava mais ou menos sóbria, e na Quarta-feira seguinte, que foi quando as aulas recomeçaram depois do Carnaval, procurou o Miguel, achando que namoravam, ou coisa que o valha, mas ele, pelo visto, estava demasiado bêbado para se lembrar... – vendo a cara de Ricardo, reformulou: – Quer dizer, isto é o que eu suponho da junção dos factos. Mas cinjamo-nos a eles: o que é inegável é que o Miguel e a Freira saíram juntos da festa do Colégio, porque eu os vi, e mais não sei. O que sei depois foi o que o Miguel me contou a respeito dumas conversas que ele apelidou de estranhas da Freira na Quarta-feira seguinte a respeito de namorarem.

Nesse momento, Ricardo lembrou-se também de que Miguel lhe contara na altura qualquer coisa sobre esse assunto e que ambos se tinham rido do facto, pensando que Carla tinha pedido namoro a Miguel. O seu pensamento começou a divagar e já não estava a prestar atenção ao que Filipe dizia. Este apercebeu-se disso:

– Então? Estás com uma cara... O que se passa?

– Desculpa, estava aqui a pensar numas coisas... Mas dizes tu que viste o Miguel ir da festa com a Carla?

– Carla!? – estranhou Filipe.

– Sim, a Freira chama-se Carla. Não sabias?

– Não. Para mim sempre foi a Freira. Mas sim, vi.

– E depois o Miguel disse-te que ela foi falar com ele?

– Foi isso, estiveste atento ao que eu disse, parabéns – ironizou Filipe.

– E tu que lhe disseste?

– Hum... Isso faz-me voltar à festa. É que eu não fui o único a ver o Miguel.

– Ai não?

– Obviamente que não!

– Explica-me – pediu Ricardo.