quinta-feira, 27 de setembro de 2007

38

Atrapalhado com as suas próprias palavras, Ricardo encontrou a sua escapatória na entrada do Pai de Miguel na sala.

- Olá Tio! Como está? – disse Ricardo, levantando-se, assim que o Pai de Miguel entrou na sala.

- Olá Ricardo! Vai-se andando! Então, já meteste algum juízo na cabeça desse malandro? Imagina tu que diz que assim que começar a trabalhar vai voltar para casa dele.

- Papá, já tivemos esta conversa. Não vamos voltar ao mesmo assunto, por favor. Não me quero aborrecer. – disse Miguel, interrompendo o Pai, visivelmente desagradado com o eventual rumo que a conversa pudesse levar.

-Vá, vamos lá acalmar os ânimos e vamos almoçar. Não quero discussões, muito menos com o Ricardo cá em casa.- Disse a Mãe de Miguel para o Marido e para o Filho, dirigindo-se de seguida a Ricardo – Ai Filho, nem imaginas as saudades que eu tenho de quando vocês eram mais miúdos e faziam as vossas algazarras cá em casa. Tinha sempre a casa cheia de vida...

- Vá lá, Tia, não pense nisso. Nós crescemos, é normal que queiramos ter a nossa casa, o nosso espaço e conduzir a nossa vida. Qualquer dia, quando menos esperar, vai ser a algazarra dos netos que vai ter cá em casa. Vai ver. – e dizendo isto, Ricardo sentiu um aperto inesperado no peito. “Netos”, pensou para consigo mesmo, “Vamos lá ver se já não tem um e nem sabe”. Pensou em Carla e em Tomás, e sentiu vontade de fugir dali, ir ter com ela e esclarecer, de uma vez por todas, as dúvidas que o atormentavam. Mas sabia que não podia. E se aquilo fosse tudo uma grande e curiosa coincidência? E se Tomás não fosse filho de Miguel?

Ricardo passou todo o almoço perdido nos seus pensamentos. A certa altura, deu-se conta do olhar interrogativo de Miguel pousado em si. Desviou os olhos e percebeu que não poderia falar com ele. Não ainda.

Quando o almoço terminou, dirigiram-se todos, novamente, à sala de estar, para tomar café. Já num ambiente mais calmo, Miguel falou da vontade que tinha de voltar ao trabalho e da evolução do SOM, no qual havia aplicado grande parte do seu tempo de convalescença.

Embrenhado na conversa, que se havia tornado bastante agradável, Ricardo nem se deu conta quando o seu telemóvel começou a tocar. Ao pegar nele e ao ver o nome de Filipe a piscar no visor, Ricardo sentiu-se petrificar.

- Olá! Tudo bem contigo? Pensava que não ias cá estar até ao final da semana... – disse Ricardo a Filipe assim que atendeu a chamada.

- Olá! Comigo está tudo bem. Contigo é que parece que não... Era para ficar fora até sexta, mas consegui chegar a acordo com os tipos da empresa sueca mais rapidamente do que estava à espera, e consegui voltar mais cedo. Mas quando cheguei fiquei e ouvi a tua mensagem fiquei preocupado. O que é que se passa, meu?

- Falamos pessoalmente. Não é um assunto para falar por telefone. Como estás de tempo, hoje?

- Tenho o resto do dia e da noite livre. Ainda ninguém sabe que já voltei. Só te liguei porque me deixaste mesmo preocupado.

- Então podes encontrar-te comigo, daqui a meia hora, em minha casa?

- Poder posso, mas não se trabalha hoje? – perguntou-lhe Filipe, verdadeiramente preocupado pelo facto de Ricardo deixar o trabalho a meio da semana só para ter uma conversa.

- Isto é mais importante do que o trabalho. Então ficamos combinados assim. Daqui a meia hora encontramo-nos à porta de minha casa. Até já, um abraço. – depois de se despedir de Filipe, Ricardo despediu-se, também, de Miguel e dos seus Pais.

- Ficas a dever-me uma conversa... – relembrou-lhe Miguel.

- Descansa, que essa conversa vai chegar. – respondeu Ricardo, num tom enigmático, antes de sair e fechar a porta atrás de si.

Já a caminho de casa, Ricardo começou a pensar na melhor forma de perguntar ao amigo o que precisava de saber. Se tudo aquilo não passassem de meras coincidências, Filipe iria pensar que ele era doido. Teria de ter muito cuidado com as palavras.

Apanhou um trânsito inesperado, e quando chegou a casa já Filipe lá estava, à sua espera. Respirou fundo e saiu do carro.

- Bem, estás com uma cara... Parece que o mundo vai acabar. Afinal o que é que se passa, Ricardo?

- Vamos subir. Já te explico tudo. Mas, Filipe... esta conversa não pode, em hipótese alguma, sair das paredes da minha casa. Estamos entendidos?

Ao reparar no semblante carregado de Ricardo, Filipe anuiu e seguiu-o. Ou muito se enganava, ou aquela conversa era de extrema importância para Ricardo. Eram amigos há anos e nunca o havia visto daquela forma. Ficou verdadeiramente preocupado.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

37

Beatriz trazia um vestido branco com pintas pretas que lhe assentava primorosamente e parecia delicada como sempre, com o seu passo soberano e a sua pose de princesa de reinos perdidos no fim do mundo. De repente, enquanto atravessava a Avenida da Boavista, tendo à sua frente a Casa da Música, cujas paredes nuas de cimento reflectiam ferozmente a luz branca do Sol, o seu olhar cruzou-se com o de Ricardo, que olhava distraidamente os peões que atravessavam à sua frente.

Ao ver o fundo dos olhos verdes de Beatriz, donde parecia que emanava uma luz misteriosa, Ricardo sentiu-se invadir por um sentimento estranho. Ao mesmo tempo, duas imagens tomaram forma dentro de si – dum lado, Beatriz e a bela história de amor abruptamente interrompida naquele Sábado de Março em que ela saíra de sua casa e da sua vida sem dar qualquer explicação nem sequer olhar para trás; do outro, Carla e tudo o que a sua proximidade o fazia sentir. Ficou tonto por uns momentos, mas logo se recompôs e desviou o olhar. Optou por ignorá-la e nem sequer fez menção de cumprimentá-la – as palavras que ela lhe dissera ao telefone da última vez que tinham falado ainda lhe doíam:

“Com o capacete, ela não vai saber se a vi ou não,” tranquilizou-se.

O semáforo tornou-se verde e Ricardo avançou sem olhar para o passeio do outro lado, onde Beatriz parara uns momentos e se voltara para trás, ficando a seguir a sua mota com o olhar. Quando esta se perdeu no trânsito da Rotunda, Beatriz retomou o seu caminho em direcção à entrada do parque de estacionamento subterrâneo.

Ricardo, por sua vez, continuou o seu caminho e só voltou a parar em frente à casa de Miguel. Apeou-se, deixou a mota junto ao passeio e dirigiu-se para a entrada do prédio, tocando à campainha. Quem atendeu foi a mãe de Miguel, que logo o mandou subir.

Ao entrar no apartamento, Ricardo foi recebido pela mãe de Miguel, que tomou o seu blusão e o pendurou no bengaleiro. Ricardo viu a mesa já posta na sala, mas não viu o amigo.

– Onde está o Miguel? Não deixou aquele malandro sair, pois não?

– Não, claro que não, ora essa! – exclamou a mãe.

Nisto, Miguel entrou no vestíbulo, sorrindo enquanto metia a sua colherada na conversa:

– Eu bem tentei, mas parece que a minha lábia já não é o que era. Ou então a minha mãezinha tornou-se imune aos choradinhos do filhinho... – disse enquanto abraçava a mãe. Depois, virando-se para ela com ar muito sério, acrescentou: – Dona Luísa, isto são modos de receber uma visita? Manter assim uma pessoa de pé na entrada sem a convidar a sentar-se um pouco enquanto o almoço não é servido? Ai, ai, ai, estou a ver que está a esquecer as mais elementares regras de boa educação... – depois, encaminhou Ricardo para a sala de estar enquanto lhe dizia: – Entra, pá, a casa é tua; já lhe conheces os cantos e não há cá cerimónias contigo! O meu pai ainda não chegou, por isso ainda vamos ter de esperar pelo almoço. Não vieste com pressa nem fome, pois não?

– Não, não! Tenho todo o tempo do mundo! – apressou-se a dizer Ricardo.

– Então óptimo, senta-te e podemos conversar um bocado enquanto esperamos.

– E eu volto já, vocês os dois conspirem à vontade – brincou Luísa.

– Podes crer que temos muito para conspirar! – exclamou Miguel sorrindo. Porém, ao voltar-se para Ricardo, já não estava tão sorridente:

– Então, meu caro, é agora que vais explicar-me tintim por tintim a nossa conversa do outro dia?

Ricardo sentiu-se desfalecer.

– Bem, meu caro, não é nada de importante. Como te disse, é um assunto de mulheres. Depois da Beatriz, ainda não tinha conhecido assim nenhuma extremamente interessante...

– Estou a ver que te caçaram – interrompeu-o Miguel.

– Não é nada disso, pá! – exasperou-se Ricardo. – O problema é que esta mulher tem o seu quê. Mas fala-me antes de ti; como te sentes?

– Lindamente! Para a semana já posso ir trabalhar. E não tarda nada volto a morar na minha casinha, que a minha mãe é muito querida, mas sufoca-me um bocado; tu lembras-te de por que saí de casa, não lembras?

– Sim, claro que lembro, e compreendo-te. Provavelmente, na tua situação faria o mesmo. Mas conta-me: a respeito da Margarida há novidades? Voltaste a vê-la ou a falar com ela?

– Não, nem me interessa muito, sinceramente.

– Folgo em ouvir isso, meu caro; nem imaginas quanto! Bem sabes que eu nunca fui muito com a cara dela e muito menos achei bem que andasses por aí a chorar pelos cantos depois que acabou; ainda para mais porque foste tu quem acabou e um homem tem de saber o que quer da vida, não é andar para a frente e para trás e nunca mais tomar uma decisão.

– Pois, mas tu sabes como eu sou: decisões não são comigo. Eh, pá! Mas não desconverses, que não foi para falar da Margarida que cá vieste! Explica-me lá essa tua história de saias.

Ricardo ficou calado por uns longos segundos, pensando no que haveria de dizer. Sabia que era agora ou nunca, mas não sabia como começar. Levantou-se e deu dois passos; voltou para trás e tornou a sentar-se. Engoliu em seco, inspirou fundo e disse:

– Na verdade, a minha história de saias não tem muito que se lhe diga, mas gostava de te fazer uma pergunta – mal acabou de pronunciar estas palavras, arrependeu-se imediatamente: “Não podias ter-te comprometido mais explicitamente.”

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

36

Aquele dia solarengo de Verão, em que nem uma só nuvem ofuscava o azul do céu, convidava a ir até à praia, mas Ricardo não podia fazê-lo, nem se sentia com disposição para tanto. Tinha optado pela mota, uma das suas paixões, para percorrer o caminho até ao seu escritório e ia serpenteando por entre os carros mal estacionados que abundam nas ruas e atrapalham o trânsito nas já de si estreitas ruas de Gaia. Chegou ao escritório à hora do costume, pouco passava das nove e meia, e dirigiu-se ao seu gabinete no sétimo andar. Dirigiu-se à janela, abriu-a e inspirou fundo. Espreitou lá para baixo e sentiu-se mais calmo, como se encontrar-se sete pisos acima do chão lhe desse mais segurança. Caminhou então para a secretária e sentou-se.

A secretária de Ricardo encontrava-se muito bem arrumada, sem um papel sequer fora do sítio; o pai sempre lhe dissera que ter a secretária cheia de papéis dispersos desordenadamente não é sinal de que se é muito importante ou se tem muito trabalho, mas sim de que não se é organizado, e isso nunca pode causar boa impressão nos clientes. Às vezes acrescentava que, numa empresa como a sua, a primeira impressão era importantíssima e que dar uma imagem de organização era meio caminho andado para conquistar a confiança do cliente.

Naquele dia, porém, não foi boa a impressão que Ricardo causou nos clientes. Por duas vezes se viu obrigado a pedir a um que repetisse o que estava a dizer, pois os seus pensamentos estavam longe dali. Pareceu-lhe que a manhã passou a voar, pois, quando olhou para o relógio, eram já horas de sair para ir ter com Miguel.

A manhã de Carla também passou a voar, mas a causa era outra. Sentia-se nas nuvens, depois do jantar do dia anterior com Ricardo. Apenas um pequeno senão ensombrava o seu estado de espírito: Ricardo era o melhor amigo de Miguel e Carla não queria imaginar qual seria a sua reacção ao saber da verdade sobre a paternidade de Tomás. Apesar de o sentir próximo, temia que tal facto pudesse afastá-lo de si e, o que era pior, que Ricardo contasse tudo a Miguel e isso pudesse levá-la a perder o seu filho. Decidiu, todavia, preocupar-se com essa questão mais tarde e deixar-se levar pelo momento, pois sentia-se feliz como já há muito não se sentia.

Depois de levar Tomás ao Colégio, telefonou a Francisca e convidou-a para se encontrar consigo:

– Já que não posso ir à festa e não te vejo há muito tempo, estava a pensar em ir fazer umas compras; nada de especial, só para sair, ver gente e pôr a conversa em dia. Que dizes?

– Acho uma óptima ideia, só que estou a trabalhar e não posso sair. Que tal à hora de almoço? Vens cá ter à Baixa e mostro-te um restaurantezinho que conheço por aqui que é de se lhe tirar o chapéu...

– Está combinado, então. A que horas?

– Eu saio à uma, por isso pode ser a essa hora. Sabes onde fica o meu emprego, não sabes?

– Não; dizes-me, por favor?

– É fácil!

Francisca explicou então a Carla como chegar ao seu local de trabalho, após o que se despediram e desligaram.

Mesmo sem a companhia da amiga, Carla foi para o centro comercial e aí passou o resto da manhã a passear. De cada vez que recordava o dia anterior, bailava-lhe nos lábios um sorriso e tinha vontade de cantar. Sentia que irradiava felicidade e que as outras pessoas com quem se cruzava, de certa forma, partilhavam consigo a sua felicidade. Passava mais ou menos meia hora do meio-dia quando Carla saiu do centro comercial para ir almoçar com Francisca.

Pouco antes de Carla sair do centro comercial, porém, já Ricardo tinha partido para casa de Miguel, não sem antes ir buscar o seu regador para dar de beber à planta que tinha no escritório. Depois disso, chamou o elevador, desceu até à cave e saiu do edifício montado na sua mota, seguindo em direcção ao Porto. A curiosidade era cada vez maior, mas o receio crescia ao mesmo ritmo. Não sabia como abordar o assunto sem ser forçado a revelar o seu envolvimento com Carla, o que não desejava, por um lado, por nem há dois meses e meio ter encorajado o amigo a aproximar-se dela, mas, sobretudo, por causa das respostas que poderia obter às suas perguntas. Tinha medo do que o seu melhor amigo pudesse dizer-lhe...

Ao chegar à Praça Mouzinho de Albuquerque, ou Rotunda da Boavista, como é carinhosamente conhecida pelos habitantes tripeiros, Ricardo parou num semáforo e viu alguém que já não via há muito tempo.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

35

No dia seguinte, Ricardo acordou pensando no que havia de dizer a Miguel, dando-se conta, pela primeira vez, do quão delicada era a sua situação. Por um lado, não tinha certezas e não via outra forma de conseguir clarificar tudo que não esperar por Filipe, mas, por outro, tudo era demasiada coincidência. Tentou lembrar-se melhor da festa do Colégio, mas tudo o que lhe veio à memória foram fragmentos distorcidos, pedaços de sons, cheiros e imagens daquilo que vivera e jurara nunca mais viver.

Recordou o último momento de lucidez, o Toni a chegar-se a si e a perguntar-lhe se já alguma vez tinha fumado ganza, ele a dizer que não e o Toni a perguntar se queria experimentar. A princípio, Ricardo recusara, mas o Toni insistira, dizendo que não se iria arrepender, e Ricardo acabara por aceitar.

– Como és maçarico, enrolo-to eu, mas depois lembra-me de te ensinar, que não sou o teu papá para te andar a fazer os charrinhos.

A princípio, fora como o Toni dissera que ia ser: a música tornara-se mais interessante e estava mesmo a convidar à dança, a sua cerveja parecia mais saborosa e a festa estava melhor e mais colorida do que nunca. As luzes da discoteca inebriavam-no e invadiam-no, dando-lhe uma sensação de invulnerabilidade. Sentia se bem e com uma imensa vontade de sorrir a toda a gente à sua volta, sorriso que rapidamente se tornou uma gargalhada incontrolável. Quanto mais ria, melhor se sentia consigo mesmo; naquele momento era o rei da festa e o dono do mundo. Apetecia-lhe comer e dançar, dançar e rir, rir e saltar, até ao primeiro arranco. Pouco depois, as luzes da discoteca cegavam-no enquanto procurava cambaleando o quarto de banho, as pessoas atravessavam-se no seu caminho olhando-o com ar ameaçador e Ricardo sentia-se vergar sob o seu peso. Gatinhou pelo meio da pista de dança durante uma eternidade até sentir uma mão a agarrar as costas da sua camisola. Não se lembrava do que se passara depois; a imagem seguinte era passada num cubículo azul debruçado sobre uma sanita pestilenta onde verteu pela boca as profundezas da sua alma, apagando-se a sua memória completamente até ao final da manhã do dia seguinte.

Acordara em casa da irmã mais velha do Toni, que já tinha os seus quase trinta e morava sozinha num apartamento em S. Mamede.

– Olá! Sentes-te bem, maçarico? – perguntara-lhe o Toni.

– Dói-me um bocado a cabeça, mas de resto estou bem. Onde estou?

– Descansa, estás em casa da minha mana mais velha; achei que o teus velhos não iam curtir ver te entrar em casa ganzado e todo podre a meio da noite.

– E não te preocupes que eu telefonei-lhes a avisar que ias dormir fora – acrescentara a irmã do Toni da ombreira da porta do quarto.

Ricardo desistiu de tentar lembrar o que quer que fosse sobre Miguel e Carla na festa do Colégio: “definitivamente, a única coisa de que me lembro daquela maldita noite é da porcaria do charro do Toni. Maldita a hora em que lhe disse que sim!”

Com este pensamento se levantou e foi para o quarto de banho. Arranjou-se, comeu uns cereais de chocolate como pequeno-almoço e saiu para o escritório. Ainda tinha uma manhã pela frente antes de almoçar com Miguel e já se sentia a perder a coragem.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

34

Quando, finalmente, aquele beijo começou a acalmar e o abraço que os envolvia ficou menos apertado, Carla tentou recuar e libertar-se dos braços de Ricardo que, sem grande esforço, não permitiu que isso acontecesse. Com suavidade, Ricardo reaproximou-a de si e voltou a beijá-la. Por instantes pensou que Carla iria tentar afastá-lo, mas ela não o fez. Quando sentiu, novamente, o calor do abraço apertado de Ricardo e o toque apaixonado do seu beijo, Carla perdeu qualquer réstia de força para lhe resistir que pudesse, ainda, existir no seu corpo. Naquele momento estavam ambos completamente envolvidos um no outro, como se de magia se tratasse.

Mas o momento rapidamente se quebrou com o toque do telemóvel de Ricardo. Quando viu o nome de Miguel piscar no visor do seu telemóvel, Ricardo sentiu um arrepio de frio percorrer-lhe o corpo inteiro. Parecia um aviso de que não devia envolver-se com aquela mulher. A contragosto, e devido à insistência de Miguel, acabou por atender o telemóvel.

- Olá! Está tudo bem?

- Estava aqui a pensar na nossa curta e nada esclarecedora conversa de hoje à tarde, e resolvi ligar-te para saber o que te atormenta assim tanto. – disse-lhe Miguel em tom de brincadeira.

Ao escutar estas palavras, Ricardo olhou para Carla com um semblante enigmático e triste, ao mesmo tempo. Os beijos que acabava de partilhar significavam muito mais do que um simples desejo. Havia neles algo mais profundo e intenso do que um mero e saciável desejo. Um sentimento que há muito Ricardo não se atrevia a sentir. Só não sabia se aquela seria, ou não, a mulher certa para voltar a fazê-lo sentir aquele tipo de sentimentos.

- Falamos depois, com calma. Não são conversas para se ter ao telemóvel, não achas Miguel?

Quando Ricardo pronunciou o nome de Miguel o olhar de Carla escureceu, como se uma nuvem o tivesse ensombrado de um momento para o outro. E, naquele instante, Ricardo teve certeza daquilo de que desconfiava. Só precisava de confirmar com as fontes certas. Pensou em Filipe, e nos tempo que ainda faltava para ele regressar a Portugal. Apenas ele poderia, com toda a certeza, contar-lhe o que havia acontecido na noite da Festa de Carnaval.

- Se achas melhor assim, também não vou insistir. Mas deves-me uma conversa, não te esqueças. – e dizendo isto, Miguel fez uma pausa prolongada, como se procurasse as palavras certas para o que queria dizer a seguir – Eu também preciso de falar contigo. Também há algo a atormentar-me. Tenho tido uns pesadelos terríveis com a Margarida e com o filho dela... Mas tens razão, não são conversas para se ter ao telemóvel. Almoça cá em casa amanhã e conversamos melhor. Que dizes? A minha Mãe ia adorar.

- Combinado. Amanhã estou aí às 13hs para almoçarmos e conversarmos. Temos mesmo muito que conversar. Agora vê lá se vais descansar. Não te esqueças do que o médico disse: nada de avarias durante, pelo menos, uma semana.

E dizendo isto desligou o telemóvel e voltou a fitar Carla. Aquele telefonema de Miguel tinha arruinado, por completo, o momento tão bonito que haviam acabado de partilhar. Nem um nem outro se sentiam à vontade para se perderem nos braços um do outro naquele instante.

- Vamos jantar? – propôs Ricardo.

Carla anuiu, e sentaram-se à mesa. O jantar decorreu com calma. O tratamento formal entre ambos caiu definitivamente. Depois daqueles momentos, interrompidos pelo telefonema de Miguel, não fazia sentido continuarem a tratar-se com a deferência de dois estranho.

Quando deixou Carla em casa, Ricardo sentia-se no centro de um furacão. Com a cabeça cheia de questões para as quais não tinha resposta, e dúvidas que, naquele momento, lhe pareciam insanáveis, Ricardo dirigiu-se a casa e, assim que lá chegou, entrou num duche a escaldar, como se procurasse exorciizar tudo o que naquele momento lhe roubava, de forma violenta e vil, a possibilidade de ser feliz. E foi naquele momento que Ricardo percebeu que ao lado de Carla seria feliz. Mas será que a vida lho permitiria? Com esta questão a dominar-lhe os pensamentos, encostou-se na cama e adormeceu.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

33

Contra a sua vontade, Miguel acabou por ir para casa dos pais. Depois de sete meses a viver na sua própria casa, sentia-se estranho por regressar à dos Pais, ainda por cima naquelas condições. Mas o médico havia sido peremptório ao dizer-lhe que teria de ficar em repouso durante pelo menos mais uma semana, e que não poderia fazer esforços. Perante tais argumentos, e por mais que lhe tivesse custado, havia sido obrigado a ceder. Mesmo assim, mesmo sendo obrigado a estar em casa dos Pais por força das circunstâncias, Miguel não conseguia sentir-se mais confortável.

Depois de estar instalado, ficou a sós com Ricardo. Olhou o amigo e, sem qualquer hesitação, perguntou-lhe o que se passava.

- Vais dizer-me o que se passa, ou não? Pareces uma barata tonta, aí a andar de um lado para o outro. Fala de uma vez!!!

Ricardo respirou fundo, como se procurasse coragem para começar a falar. Tinha receio das perguntas, mas conseguia tê-lo mais das respostas. Voltou a respirar fundo, mas acabou por perder a coragem.

- Não é nada relevante. Falamos depois. Mulheres...

- Não me digas que é a Beatriz outra vez?

- Não, nada disso. Depois conto-te tudo, com calma. Agora precisas de descansar. Vou-me embora! Vê lá se não te metes em aventuras, se não em vez de uma semana só de cama, ainda tens de ficar mais um mês. Cuida-te, rapaz – e, dizendo isto, Ricardo saiu do quarto do amigo, despediu-se rapidamente dos seus Pais e saiu para a rua.

Precisava de pensar. Todas aquelas dúvidas o atormentavam. Fechou os olhos e pensou em Carla. Precisava de a ver. E sabia que não ia conseguir resistir muito mais tempo. Pegou no telemóvel e ligou-lhe. Do outro lado tocou uma, duas, três vezes, e à quarta Carla atendeu.

- Olá Ricardo. Não estava à espera que me ligasse. Não depois da forma como nos despedimos, da última vez...

- Estou com saudades suas, Carla. Preciso de a ver. Não diga que não, por favor.

- O Tomás vai jantar com o meu Pai hoje. Podemos jantar. O que me diz?

- Às 19h30 passo aí. Jantamos em minha casa. Pode ser?

Apesar de estranhar o convite para jantar na casa de Ricardo, Carla aceitou-o.

Quando desligou o telefone deu-se conta de que eram 18h30. Já só tinha uma hora para se despachar. Agora que estava em casa, pelo menos até as suas aulas na Faculdade começarem, tinha muito mais tempo livre. O regresso do Pai à empresa tinha sido providencial.

Aquela hora passou, e Ricardo deu-lhe um toque para avisar que havia chegado e estava à sua espera. Desceu e entrou no carro dele. Sentiu-se tremer como se fosse uma adolescente. Não sabia o que esperar daquele jantar. Teria de esperar para ver.

Ao entrar em casa de Ricardo, foi surpreendida com a mesa posta e as velas a arder. Voltou-se para trás e olhou Ricardo nos olhos. E, naquele momento, o mundo à sua volta desapareceu. Quando se deram conta estavam nos braços um do outro, envolvidos num beijo intenso e profundo, que nenhum dos dois tinha vontade que terminasse.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

32

Miguel estava de novo na sala, sentado no sofá em frente à televisão, rodando a sua aliança no dedo e olhando distraidamente para o ecrã do aparelho. De vez em quando, olhava para um bebé que brincava ali perto, até que se levantou e pegou nele. O bebé, como era seu hábito sempre que Miguel lhe pegava começou a chorar, mas desta vez Miguel estava determinado: levou o bebé para o quarto de banho, deitou‑o na banheira, fechou o ralo e abriu a água fria. A princípio, o bebé chorou mais alto e mais convulsivamente, mas, pouco a pouco, foi perdendo as forças à medida que a água subia e Miguel o mantinha deitado no fundo da banheira. Passados alguns minutos, o bebé estava totalmente coberto por água. Já não chorava; Miguel sentiu-se aliviado por segundos antes de a angústia sobrevir e o fazer acordar sobressaltado.

Há três semanas que não tinha aquele sonho; não percebia por que tinham as imagens que julgava para sempre desaparecidas da sua mente decidido voltar a torturar o seu sono e por que se haviam permitido desta vez ir mais longe do que foram todas as outras. Espreitou o seu relógio na mesinha de cabeceira; passava pouco das dez horas.

Ao mesmo tempo, Margarida acordava da anestesia:

– Como correu? – perguntou, ainda com a voz entaramelada, à enfermeira que se encontrava mais próximo de si.

– O senhor doutor já vem falar consigo – respondeu esta secamente.

Aquela terça-feira amanhecera cinzenta e chuvosa e assim continuara da parte da tarde e Ricardo sentia-se cinzento e triste como o tempo que fazia do lado de fora da janela do seu escritório.

“Nem parece que estamos na Primavera!”, pensou para consigo mesmo.

As dúvidas sobre a paternidade de Tomás assombravam-no desde a Sexta-feira anterior. Carla conhecia Miguel; haviam sido colegas de turma, mas isso poderia não querer dizer nada. Estava confuso, sem saber o que pensar ou o que sentir. Tudo aquilo lhe parecia demasiado estranho e seria uma assombrosa coincidência se as suas suspeitas se confirmassem. Tentou limpar a mente daqueles pensamentos, mas qualquer coisa o prendia à imagem de Carla. Ansiava por voltar a vê-la, mas sabia que não devia, pelo menos não naquele momento. Precisava de organizar as ideias e de falar com uma pessoa: Filipe podia ajudá-lo, mas estava fora de Portugal até ao final da semana seguinte, pelo que teria de esperar até ao seu regresso.

Não se deu conta de quando o seu telemóvel tocou. No visor piscava o número de casa dos pais de Miguel. Quando finalmente atendeu, ouviu do outro lado a voz da Mãe do amigo, que o informou de que Miguel teria alta do Hospital daí a quatro dias. Finalmente chegavam as boas notícias; estava mesmo a precisar delas! Agora tinha de pensar em como abordar o assunto com Miguel, para ele não desconfiar de nada. Precisava de ter certezas absolutas, mas tudo o que tinha naquele momento eram meras suspeitas, fortes e com algum fundamento, era certo, mas, ainda assim, apenas suspeitas.

Decidiu sair do escritório e ir a qualquer sítio. Não sabia bem onde, pelo que acabou sentado num banco dos Jardins do Palácio de Cristal. Era o seu refúgio, sempre que não tinha mais para onde ir. Já conhecia cada recanto de cor, mas nunca se cansava desse lugar mágico.

“Hei-de cá trazer a Carla”, pensou, e logo continuou: “Mas antes tenho de tirar a história do Tomás a limpo. As parecenças são gritantes.”

Como nada mais podia fazer para além de esperar, assim fez durante os dias que se seguiram, até que Segunda-feira chegou e, com ela, a alta de Miguel. Ricardo foi ter ao Hospital, onde já se encontravam os pais do amigo, e vieram até casa destes. Miguel estava radiante por poder finalmente sair do quarto onde estivera fechado durante um mês certinho.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

31

Após a saída de Tomás para ir experimentar a sua nova camisola, sobreveio um silêncio incómodo, que Carla cortou, tentando puxar um novo assunto depois da conversa que acabaram de ter:

– Papá, não imaginas como a notícia de que reassumirás o teu cargo me deixa contente! Eu sempre soube que ias dar a volta por cima e regressarias à empresa. Além do mais, eu não tenho jeito para aquilo. Ainda bem que não quis tirar Gestão; iria ser muito infeliz!

Acabando de dizer isto, Carla lembrou-se subitamente de Francisca e do seu convite para a festa do Colégio e lembrou-se também de que ficara de dar uma resposta à sua amiga até ao dia anterior. Aproveitando essa tábua de salvação para abandonar aquela situação constrangedora, pediu desculpa ao pai e dirigiu-se ao telefone, marcando o número de casa da amiga.

Quem atendeu foi António, o marido de Francisca. Carla estranhou-lhe a voz, pois era apenas a segunda vez que falavam e Carla nem o conhecia ainda pessoalmente – estavam casados há apenas quatro meses e Francisca e Carla ainda não tinham estado juntas depois disso, nem Carla fora ao casamento, por este ter calhado uns dias depois do trágico acidente que vitimara a sua mãe e os seus avós –, pelo que, a princípio, julgou que enganara no número. Após o primeiro momento de confusão, os dois interlocutores reconheceram-se e Carla pediu para chamar Francisca.

– Está?

– Olá, Francisca! Como estás?

– Bem, e tu?

– Também. Estou a ligar-te por causa da festa.

– Sim, sim! Sempre podes ir?

– Infelizmente, não, minha querida. Nessa altura estarei em Lisboa a tratar duns assuntos que lá deixei pendentes – mentiu Carla. – Desculpa não te ter avisado logo ontem, como te tinha prometido, mas foi um dia louco e acabei por esquecer-me. Não ficas zangada?

– Claro que não! – respondeu Francisca, mas Carla notou na sua voz um certo desapontamento e sentiu-se mal por isso.

Francisca foi a única amiga que Carla fez durante os três anos e meio em que frequentou o Colégio, a única que se aproximou de si quando todos os restantes colegas a punham de parte por causa da sua maneira de ser. A amizade entre as duas raparigas começou no dia em que Carla esteve doente e faltou às aulas. Ao fim da tarde, Francisca parou em sua casa para deixar ficar as fichas que os professores tinham distribuído nesse dia, bem como cópias dos apontamentos nos seus cadernos. Quando, no dia seguinte, já melhor da gripe, Carla regressou ao Colégio, correu a agradecer a Francisca e insistiu no convite para lanchar em sua casa depois das aulas. Francisca acabou por aceitar, sob o olhar atento do resto da turma, que não compreendia como alguém poderia querer lanchar em casa da Freira. A partir desse dia, as duas raparigas foram-se aproximando e descobrindo gostos e interesses comuns e maneiras de ser que, afinal, não eram tão distantes quanto poderia parecer e assim surgiu uma amizade que perdurou mesmo após a ida repentina de Carla para Lisboa. Esse foi um momento difícil na relação entre ambas, visto que Carla não pôde contar a história de Tomás e por que fugira para Lisboa à amiga e Francisca, a princípio, ressentiu-se disso. Porém, acabou por aceitar, embora sem compreender totalmente, a opção de Carla em manter segredo a respeito dos motivos que a levaram para Lisboa tão apressadamente e guardou as suas suspeitas sem nunca tentar confirmá-las, nem confrontando Carla directamente, nem indagando outras fontes; preferiu esperar que a amiga se decidisse ela mesma a contar-lhe a verdade. Quando Carla se mudou de novo para o Porto, Francisca foi a primeira pessoa a saber desse regresso e a amizade que as unia, entretanto arrefecida, como necessariamente acontece a duas pessoas que se encontram a trezentos quilómetros de distância, mas nem por isso enfraquecida, manteve-se com todo o seu vigor.

Por ser a melhor amiga de Carla no Porto – e uma das poucas do tempo do secundário –, sonegar a verdade a Francisca era imensamente custoso, mas tinha de ser. Quanto menos pessoas soubessem da verdadeira história de Tomás, melhor. Assim, as duas despediram-se e Carla desligou o telefone, acabrunhada.

O resto de Sábado e todo o dia de Domingo decorreram sem grande história. Segunda-feira de manhã, com um peso na alma, Margarida telefonou para o consultório do seu ginecologista e pediu para marcar uma consulta urgente. A telefonista informou-a de que só poderia marcar para daí a uma semana, pois antes disso o senhor doutor não tinha vaga, e perguntou-lhe se podia ser no dia vinte e quatro às quatro.

Margarida sobressaltou-se: se só fosse à consulta na data proposta, sobrava-lhe muito pouco tempo antes de findar o prazo!

– E não posso tentar a minha sorte antes? Pode ser que falte um doente...

– Sim, pode tentar. Venha depois de amanhã, então, que está marcada uma doente que tem um filho pequeno que volta e meia está doente e já não é a primeira vez que falta à consulta para ir com o filho para a Urgência.