terça-feira, 31 de julho de 2007

21

Miguel estava em casa e tinha uma aliança no dedo. A televisão estava ligada e Miguel estava sentado no sofá em frente a ela, mas não estava a ver o que o pequeno ecrã reproduzia. A sua atenção estava voltada para um bebé que brincava ali perto. De repente, Miguel levantou-se e pegou no bebé, que começou a chorar. Sempre que lhe pegava, o bebé chorava, como se quisesse lembrar a Miguel que não era ele o seu pai. Miguel estava farto disso. Estava farto de olhar todos os dias para o bebé e ver na sua cara rosada a do pai, a do homem que engravidara Margarida. Estava farto de ter de lidar com o facto de que Margarida tivera outro homem e que Miguel fora a segunda opção. Todo o ódio que possuía dentro de si se concentrou nesse momento no pequeno bebé. Miguel levou-o até ao quarto de banho, depositou-o na banheira, fechou o ralo e abriu a água fria.

Miguel não sabia se estava acordado ou a dormir; passar o dia deitado numa cama de hospital fazia-o perder a noção do tempo e de si mesmo. Sabia que era noite pela escuridão que lhe entrava pela janela, mas não sabia que horas eram. Soergueu-se e procurou o relógio na gaveta da mesinha de cabeceira: eram quase dez e meia. Agora estava definitivamente acordado. Tinha sido sem dúvida um sonho, ou talvez fosse mais apropriado dizer um pesadelo. A última realidade que tinha por certa era a visita de Margarida.

Margarida… Deixou-se ficar um pouco a rever o que se tinha passado naquele quarto de hospital e arrependeu-se. Quer dizer, não sabia, já não sabia nada de nada. Já não sabia se o que sentia por Margarida era amor ou ódio, ou ódio por não conseguir deixar de amá-la, ou raiva por ela estar bem nos braços doutro homem enquanto ele estava no hospital por causa dela, ou inveja dessoutro homem que lhe roubara o coração e lha roubara de si. Sentia que Margarida era sua, sempre fora e sempre havia de ser, mas já não sabia se a queria.

– Estou tão farto de fazer borradas na minha vida! – murmurou. – Se ao menos soubesse qual é o caminho certo…

Mas não podia saber. Só se pode saber se um caminho leva ao destino desejado depois de percorrê-lo e, na maioria dos casos, esses caminhos são de sentido único; mesmo que o não sejam, o tempo perdido a percorrê-lo e a voltar para trás é irrecuperável. Miguel sabia disso, e isso deixava-o ainda mais confuso. Mandara Margarida embora quando esta viera visitá-lo de tarde num acesso de impulsividade de que entretanto se arrependera, mas o sonho que agora tivera… Perguntou-se a si mesmo como poderia viver ao lado de Margarida olhando diariamente para um filho que não era seu. Como poderia cuidar duma criança que era a lembrança dos momentos mais horríveis da sua vida, em que mais havia sofrido? Mas, por outro lado, Margarida… Lembrou-se da festa de aniversário em que a conhecera, dos passeios de mão dada junto ao mar, do primeiro beijo, dos que se lhe seguiram, de todos os momentos que passaram juntos, dos planos que faziam para o futuro…

Lembrou-se então de Ricardo. Que falta lhe fazia uma conversa com o amigo naquele momento!

Na esplanada, o telemóvel de Ricardo começou a tocar. Pedindo desculpa a Carla, Ricardo pegou nele e viu o número de Margarida a cintilar. “É engraçada a vida”, pensou, “nunca quis ter o número dela gravado no telemóvel, e, por causa disso, acabei por decorá-lo, mas não sei o número do Miguel.” Atendeu:

‒ Diz, Margarida – a voz denotou-lhe o enfado.

‒ Preciso de falar contigo, pessoal e urgentemente – disse-lhe a voz do outro lado.

‒ Pois, mas agora não pode ser, que não estou em casa e estou ocupado. Eu depois ligo-te e combinamos qualquer coisa, pode ser?

‒ Não, não pode. A que horas chegas a casa?

‒ Não sei.

‒ Então amanhã de manhã, antes de saíres para o trabalho, passo por lá.

Ricardo assentiu, suspirando, e despediu-se de Margarida, dirigindo-se em seguida a Carla, em jeito de desculpa:

‒ Há alturas em que tudo parece acontecer em catadupa. Estas duas últimas semanas têm sido de doidos!

Carla aproveitou a deixa para tentar saber um pouco desse amigo hospitalizado – Miguel, porventura:

‒ Pois, compreendo… Disse-me que tinha, inclusivamente, um amigo no hospital… Está melhor?

‒ Sim, saiu da Observação e está agora internado na enfermaria, mas ainda lá vai ficar uns tempos, segundo me disseram os médicos.

‒ É assim tão grave?

‒ Ele saiu com o carro completamente da estrada e caiu por uma ribanceira. Teve muita sorte de não acabar parado em cima da linha de comboio que passava lá perto! Sabe-se lá onde estaria agora, se fosse o caso…

‒ Pois… O Ricardo tem-lo visitado?

‒ Ainda hoje estive com ele; fui lá vê-lo.

Carla estava na dúvida sobre como prosseguir a conversa. Queria saber de Miguel, mas não queria parecer intrometida. Bebeu um gole da sua bebida para pensar no que dizer a seguir.

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