quinta-feira, 19 de julho de 2007

18

- Entendo-te, meu amigo - disse Ricardo, mas não podia entender. Miguel sabia que ninguém podia entender como ele se sentia naquele momento.

Sabia que não fazia sentido, a sua razão dizia-lhe que fora ele quem acabara, fora ele quem lhe dissera que não tinha a certeza do que sentia, que precisava de espaço para si, espaço para pôr as suas ideias e os seus sentimentos em ordem; sobretudo, que precisava de tempo, tempo para sair de casa, tempo para ficar em casa, tempo para ouvir os pais, tempo para ouvir os amigos, tempo para ouvir o seu melhor amigo Ricardo e, acima de tudo, tempo para se ouvir a si mesmo, para ouvir o que o seu coração lhe dizia a cada batida que dava no fundo do seu peito, mas também tempo para não ouvir nada nem ninguém, tempo para buscar apenas o silêncio absoluto e, no fundo desse silêncio, encontrar uma resposta.

Fora ele quem lhe dissera que não era justo fazê-la esperar por si, que não tinha o direito sequer de lhe pedir que atrasasse a vida enquanto ele tentava pôr a sua própria em ordem, que era uma estrada que ele tinha de seguir sozinho e que não podia prometer que os caminhos de ambos voltassem a cruzar-se. Sabia também que estas palavras a tinham magoado, sabia muito bem, vira-o em cada lágrima que ela vertera enquanto ele falava, vira-a lavada em lágrimas à porta do apartamento antes de entrar no elevador e descer até ao rés-do-chão. Saiu do prédio e da vida de Margarida, assim transpôs a porta, sem sequer olhar para trás.

Não olhara para trás talvez porque no fundo soubesse que voltaria a bater àquela porta, embora não esperasse encontrá-la fechada. Apesar de ter dito a Margarida que não queria que ela esperasse por si, no fundo do seu ser, secretamente, contava que ela o fizesse.

Contudo, apesar de saber disto tudo, apesar de ter consciência de que em nenhum momento Margarida fora desleal para consigo, o seu coração sentia-se atraiçoado. Doía-lhe de cada vez que lhe telefonava e ela não atendia o telefone e doera-lhe a dor mais aguda que alguma vez sentiu quando Ricardo lhe contara da gravidez.

- Não, tu não entendes, Ricardo. Não podes entender o que é ver a mulher que tu amas grávida doutro homem. Eu não me despistei por acaso, Ricardo! Eu estive quatro noites sem dormir, atormentado pelas tuas palavras, tentando em vão falar com ela, ouvir da boca dela a terrível notícia! Ela não me atendeu uma só chamada, Ricardo! Sabes o que é saires de casa completamente transtornado com um único objectivo a ocupar-te por completo: falares com ela, ouvires da boca dela que não, que tudo não passou dum pesadelo, que ela não conheceu ninguém e que não está grávida e que ainda gosta de ti e ainda te quer e que ainda vão ser felizes juntos? E sabes o que é teres a confirmação da verdade da forma mais dura? Vere-la no carro com outro homem, um homem que, ainda por cima, tinha aspecto de quem tem idade para ser pai dela, e veres a forma como ela o olha enquanto ele conduz e sentires que aquele olhar te pertence e te foi roubado!?

- Ninguém te roubou nada, Miguel! Mete isso na tua cabeça! Nin-guém te rou-bou na-da! Tu deitaste fora e outro guardou!

- Tu não entendes... Não podes entender... Eu vi com os meus olhos, Ricardo! Vi com os meus olhos e não vi mais nada depois do que vi - Miguel fechou os olhos depois desta última frase. Como Ricardo não dissesse nada, acrescentou em tom neutro: - Tanto não vi mais nada que despenquei ribanceira abaixo...

Miguel não disse mais nada e Ricardo também não falou; a cumplicidade entre os dois não exigia que falassem e há muito que Ricardo aprendera que o silêncio é também uma forma de comunicação, tão ou mais poderosa do que a palavra. Ao seu lado, o doente que arrulhava como uma rola parou finalmente de gemer. Embora Ricardo tivesse deixado de o ouvir, ou pelo menos de prestar atenção ao que ouvia, porque toda a sua atenção estava virada para Miguel, o silêncio que então se abateu sobre a enfermaria fê-lo olhar em volta.

Havia duas camas e ambas estavam ocupadas. Miguel encontrava-se na da janela e o doente que parecia uma rola na junto à porta. As paredes eram brancas, sujas e riscadas até cerca de meio metro do chão, que era verde com rasgos cinzentos, e a porta, entreaberta, era de madeira. Pela janela viam-se várias faculdades da Universidade do Porto e um metro em tons de amarelo serpenteando por entre elas ao som de ferro a raspar em ferro em cada curva. O vidro da janela estava levemente sujo e a caixilharia tinha alguns sinais de ferrugem.

- Miguel...

- Diz.

- Vou ter de ir. Ficas bem?

- Dentro do possível... - Miguel tinha as duas pernas e um antebraço engessados e duas escoriações na face cobertas generosamente com tintura de iodo.

Ricardo saiu da enfermaria pensativo. Pior do que o aspecto físico, preocupava-o o estado psíquico do amigo. Caminhava lentamente pelo corredor, envolto nestas cogitações, quando ouviu chamar o seu nome. Olhou e viu Margarida.

- Olá, Ricardo... - Parecia hesitante.

Ricardo olhou para ela e não disse nada. Margarida prosseguiu:

- Vieste visitar o Miguel? Em que sala é que ele está?

- Que queres dele? - perguntou.

13 comentários:

B disse...

Ui a Margarida a visitar o Miguel? Isto traz "água no bico"....

Anónimo disse...

AHA!!! vamos ver o que sai daí... intriga, desencontros... um bocado de acção meus meninos! :)

Foi bom ate agora. surpreendam-nos!!

Maria disse...

Este merece o meu comentário, mais do que nenhum outro. Sabes bem porquê...

Beijo enorme, meu querido e obrigada :-)

Anónimo disse...

Muito bom...então esse última pergunta da Margarida..humm não sei não.

GMSMC disse...

Bárbara,

Terça-feira talvez já tenhamos resposta para essa interrogação. Para mim, a parte mais divertida de escrever a dois é ver o que acontece com a história quando é a vez da Maria escrever. Sou um leitor fanático dela.

Beijinho,
GMSMC

GMSMC disse...

Tiago,

Ainda bem que desta vez já não saltaste linhas.
Quanto à intriga e aos desencontros, também estou curioso de saber o que levou a Margarida a visitar o Miguel.

Abraço,
GMSMC

GMSMC disse...

Ana,

Não foi por acaso que te desafiei a lançares-te comigo nesta "perigosa aventura"; já conhecia a tua escrita e sabia que a coisa só podia correr bem.
Devo confessar-te com uma certa imodéstia que este episódio é também o meu favorito, pois foi pensando nele que resolvi começar a escrever.

Beijo,
Gustavo

GMSMC disse...

BACMS,

Achei interessante ressaltares a última pergunta, porque tem muito que se lhe diga.
Ao mesmo tempo, Ricardo ficou, tal como todos nós, surpreendido pela presença da Margarida no hospital, mas, por outro lado, revelou uma certa agessividade na forma como se lhe dirigiu, como que em defesa do amigo, o que faz sentido, tendo em conta que Ricardo já demonstrou anteriormente a sua antipatia por Margarida, ou, se não pela pessoa, pelo menos pela proximidade desta em relação a Miguel.
De resto, obrigado pelo comentário; é sempre bom ter retorno daquilo que vamos escrevendo.

Abraço,
GMSMC

Anónimo disse...

A história inacabada está cada vez melhor até mesmo quanto à erudição da escrita... Já agora uma dúvida pode dizer-se "vere-la"?

GMSMC disse...

Anónimo,

Como regra geral, sempre que a forma verbal termina em "r", "s" ou "z", a adição dum pronome é feita retirando a última letra do verbo e acrescentando "l" antes do pronome; por exemplo, "tu vês a casa" passa a "tu vê-la".
O infinitivo pessoal conjuga-se da seguinte forma: ver; veres; ver; vermos; verdes; verem.
Assim, aplicando a regra enunciada inicialmente, da junção de "veres" com "a" obtém-se "vere-la".

GMSMC

Anónimo disse...

Obrigado pela lição de gramática que nos proporcionou.

Salete disse...

Bem, realmente este capítulo só podia ser teu Gustavo! Gostei!
Beijinhos, continua!;)

GMSMC disse...

Salete,

Não sei dizer mais que: obrigado!

Beijinhos,
Gustavo