quinta-feira, 14 de junho de 2007

8

- Preciso de falar com o Miguel o quanto antes! - Ricardo não costumava falar sozinho, mas o choque fora tal que os pensamentos, como se tivessem vontade própria, teimavam em fazer-lhe vibrar as cordas vocais e mover-lhe os lábios até conseguirem sair, como se ouvir o produto do trabalho furioso que se desenrolava no interior do seu cérebro tornasse mais fácil decidir o que fazer. - Não, o melhor é não lhe dizer nada. Mas ele tem de saber. Por que é que a Margarida me meteu a mim no meio desta história? Ora, porque sou o melhor amigo do Miguel, e ela não sabia como abordá-lo. Pois, e agora deixa-me a mim com a batata quente nas mãos...

Depois de percorrer a casa várias vezes como se fosse um animal enjaulado, mas sem ver por onde andava, tal era o turbilhão de pensamentos que não deixava espaço para que o cérebro processasse as informações que lhe chegavam a partir dos olhos, de tal forma que várias vezes tropeçou nos móveis e uma vez até esbarrou contra o umbral da porta do quarto, acabou por decidir que o melhor a fazer seria tomar o seu banho, um banho que lhe lavasse a alma depois do que acabara de ouvir, conforme, aliás, já estava a precisar antes da visita de Margarida, e sair, procurar um pouco de ar da tarde, uma brisa que lhe refrescasse as ideias e o aconselhasse sobre a melhor forma de agir para resolver o assunto a contento.

Despiu-se e entrou no chuveiro. A água a escaldar teve um efeito calmante. Deixou-se ficar ali, em silêncio, mas, ainda assim, as ideias fluíam mais torrencialmente do que a água que lhe caía sobre o corpo. Quando saiu do banho meia hora depois, vestiu uma camisa aos quadrados, umas calças de ganga e um blusão azul e saiu. Não pegou no carro; foi de mota. Atravessou a Ponte da Arrábida e foi até ao Palácio de Cristal, que de palácio tem pouco e de cristal muito menos. Na verdade, do dito palácio só ficou mesmo o nome, porque no seu lugar ergue-se hoje o Palácio dos Desportos - o Pavilhão Rosa Mota. Contudo, Ricardo sempre encontrou nos jardins que o circundam paz e inspiração para resolver os problemas com que se confrontava.

Ao entrar, as recordações de Beatriz e da última vez que aí tinha estado com ela assolaram-no inevitavelmente. Enquanto esperavam por Miguel ("aquele rapaz anda sempre atrasado!", queixara-se Beatriz na altura, e com razão, pois Miguel chegara, como, de resto, era seu costume, com meia hora de atraso), Ricardo tinha feito uma sessão fotográfica nos jardins com a namorada como modelo.

"Bons tempos", pensou, voltando rapidamente ao presente: "E agora o que faço com o Miguel?"
Relembrou a visita de Margarida.

- Então não me convidas para entrar?

- Desculpa, entra, entra. É que não esperava a tua visita, diria mesmo que eras a última pessoa no mundo que esperava ver à porta.

- Acredita que reflecti muito antes de cá vir, mas acabei por chegar à conclusão de que tu és a pessoa indicada para me ajudar.~

Ricardo estremecera nessa altura: "Eu sou a pessoa indicada para ajudar a Margarida? Mas que é que ela me quer?" Margarida prosseguira:

- Como está o Miguel?

- Deves saber que não está bem. Ele tem-me contado que te tem procurado.

- Pois tem, e é sobre isso que quero falar contigo.

- Então?

- Não vou estar aqui com rodeios, que não vale a pena: tu és o melhor amigo dele, e por isso tens de lhe dizer que se afaste de mim de vez.

- E achas que não lhe tenho dito? - exclamara, enquanto pensava para si: "Por mim, ele nunca se tinha era envolvido contigo, que tu não és nem nunca foste mulher para ele, mas ele lá sabe da vida dele."

- Pois, mas tens de ser mais veemente. Ele não me dá espaço, e isso faz-lhe mal e faz-me mal a mim também. E depois há outra coisa... - Margarida interrompera-se; parecia estar à procura das palavras certas, e Ricardo achara por bem esperar que as encontrasse. - Eu conheci outro homem há três meses e estou grávida.

As palavras caíram sobre Ricardo como se lhe tivessem dado uma martelada no crânio.

- G-grávida!? - lembrou-se de ter tartamudeado.

- Sim, grávida de mês e meio.

Se não fosse o desnorte em que ainda se encontrava quanto ao que fazer, Ricardo não poderia deixar de sorrir ao recordar os momentos que se seguiram: ele a tentar compor uma frase com princípio, meio e fim e Margarida a levantar-se muito rapidamente e a dizer que não queria que Miguel soubesse de nada; que, se lhe tinha contado a ele, Ricardo, era porque queria que ele percebesse a importância de a ajudar a afastar Miguel, porque ela já não era a namorada dele nem nunca mais voltaria a ser, e só ele parecia não compreender isso.

Ricardo sentou-se num banco: só a memória das palavras de Margarida tinha conseguido abaná-lo de novo. De repente, deu-se conta de que ainda não tinha almoçado e já eram quase três e meia. Dirigiu-se ao Restaurante do Palácio, entrou e pediu o prato do dia. Quando se sentou à mesa com o tabuleiro, apercebeu-se de que não tinha fome.

De repente, pensou de novo em Beatriz. Nunca mais tinha sabido nada dela desde a sua saída da casa onde ambos moravam. Onde andaria? Teria também conhecido alguém? Teria conhecido alguém quando ainda estavam juntos? Teria sido esse alguém o motivo da sua saída intempestiva? "É melhor não pensar nisso agora; deixa-me ver o que faço com o Miguel. Conto-lhe ou não lhe conto? É melhor contar; afinal, eu já estou farto de lhe dizer para esquecer a Margarida e não resulta. Talvez agora, perante os factos, ele acorde e perceba que acabou definitivamente. Se a Margarida veio falar comigo, devia saber que a minha lealdade é para com o Miguel, e isso implica que não lhe esconda nada que lhe diga respeito directa ou indirectamente. Mas eu nem quero imaginar como o Miguel se sentirá quando souber que a Margarida está grávida doutro homem! Ele não aguenta uma notícia destas... Também tenho de pensar nisso."

Levantou-se e saiu do restaurante, deixando a refeição intacta em cima da mesa. Caminhou mais um pouco à sombra, parou em frente à fonte que havia junto à entrada e saiu do jardim ao mesmo tempo que um autocarro passava. Levantou a cabeça, olhou para um lado, depois para o outro, e desceu em direcção ao local onde deixara a sua mota. A sua decisão quanto ao que fazer estava tomada. Antes de mais, era preciso ligar para a empresa e desmarcar a reunião da tarde; não estava em condições de enfrentar clientes. Depois, era preciso falar com Miguel.

Começou por ligar para a empresa. A secretária atendeu ao fim de dois toques.

- Cristina, por favor desmarcas-me a reunião que eu tinha para a tarde?

- Sim, claro. Que devo dizer ao cliente?

- Olha, diz-lhe o que quiseres, que eu nem para inventar desculpas estou bom.

- Pode ter comido qualquer coisa que lhe fez mal...

- Sim, serve, obrigado. Até amanhã.

"Agora vou ligar para o Miguel, mas ligo de casa." Assim pensando, Ricardo montou na mota e partiu de novo.

4 comentários:

Anónimo disse...

Então onde é que anda o outro elemento do blog? Não é que tenha nada contra o Gu mas a presença dos dois equilibra o lado sentimental com o racional, e o lado mais feminino com o masculino. Mesmo assim a história com o mesma capacidade de nos surpreender a cada novo capitulo, por isso...que venha o proximo

Maria disse...

BACMS - É bom perceber que a minha falta é sentida por estes lados.

O outro elemento do blog - Eu - teve um pequeno "acidente de percurso" que não lhe permitiu escrever.

Terça retomarei a escrita! Espero que voltes para ler!

Beijinhos,

Maria

B disse...

Sim Maria sentimos a tua falta!

Espero que essa "acidente de percurso" já esteja resolvido e a bem.

Beijinhos

Maria disse...

Bárbara - Muito obrigada pelas tuas palavras!

O "acidente de percurso"já está resolvido, sim. :-)

Já estou a preparar o meu "regresso".

Beijinhos,

Maria