terça-feira, 22 de maio de 2007

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- Não te lembras de mim, pois não?

Miguel remexeu, em vão, as suas memórias em busca dalguma recordação que lhe dissesse quem era a rapariga que agora se encontrava diante de si. Resolveu arriscar um pouco de charme...

- Eu nunca esqueço uma menina bonita, mesmo quando fico uns tempos sem vê-la. Conta-me! Por onde tens andado?

- A sério que sabes quem sou? – a rapariga não parecia totalmente convencida.

Miguel manteve a estratégia evasiva, esperando com isso obter informação que lhe permitisse identificar aquela morena que agora lhe falava no bar como se fossem velhos amigos desencontrados:

- Já te disse que sei perfeitamente quem és. Só não sei é o que tens feito desde a última vez que nos vimos. Já vão uns anitos, mas continuas igual…

- Definitivamente, não te lembras de mim, senão não dizias isso! – o tom de voz da rapariga tornou-se um pouco mais ríspido.

Miguel apercebeu-se da mudança de atitude e reagiu em conformidade:

- Oh querida! Sim, claro que estás diferente em muitas coisas, estás mais mulher, mais elegante, mas dá para perceber quem és. Doutra forma, não me lembraria de ti…

- Ai sim? Então como me chamo?

“Xeque-mate!”, pensou Miguel. “Agora como me safo desta?” Optou por esticar a corda mais um pouco e arriscar.

- Não acredito que estás a duvidar de mim! Se eu digo que me lembro perfeitamente de ti no Colégio! Eras da minha turma e tudo!

A rapariga pareceu acalmar. Um leve sorriso dançou nos seus lábios.

“Acertei! Ela era do Colégio! Mas quem seria? A Joana? Não! A Diana? Também não. A Helena? Definitivamente não! Não faço mesmo ideia…” Miguel continuou ao ataque:

- Agora que já acreditas quando te digo que me lembro perfeitamente de ti, vais contar-me o que tens feito desde a última vez que te pus a vista em cima? Já vai há uns anitos…

- Sete, precisamente.

“Sete!? Espera aí; eu só acabei o décimo segundo há cinco anos, quase seis… Se ela andou no Colégio e já não me vê há sete anos… Quem foi que saiu de lá antes do final? Não pode ser!” Miguel estava boquiaberto: “Esta é a Freira!? Ninguém muda assim tanto!”

- Pois, sete. Tu saíste do Colégio a meio do décimo primeiro, não foi… Carla?

Desta vez, a rapariga abriu-se num sorriso:

- Ainda te lembras mesmo de mim!

“Impossível esquecer uma personagem como tu”, pensou Miguel. “Não imaginava era que pudesses mudar tanto.”

Carla e Miguel eram nesses tempos do secundário os melhores alunos da turma, embora tivessem estilos totalmente diferentes. A Carla era a típica aluna aplicada, solitária, que lia a matéria antes de ir para a aula e ficava no seu canto bebendo as palavras do professor e tirando notas no caderno impecavelmente forrado com papel autocolante, nessa sua letra certinha de menina bem comportada. Era conhecida no Colégio inteiro como “a Freira”. Miguel era o oposto: irreverente, brincalhão, capaz de provocar a algazarra na turma com os seus comentários jocosos a propósito da matéria. Estudava de véspera, depois de jogar uma futebolada com os amigos, mas safava-se sempre, frequentemente melhor do que a estudiosa Carla. Ela nunca lhe perdoara isso, o que sempre azedara as relações entre ambos. De resto, fora Miguel quem inventara o epíteto "a Freira" para apelidar Carla, numa tarde em que esta passava junto ao campo de futebol.

Miguel estava sentado na bancada, cercado de raparigas, como aliás era costume, à espera da vez da sua equipa para jogar e Carla dirigia-se para a entrada da biblioteca do Colégio com os livros das aulas do dia junto ao peito.

- Olha para o ar dela; parece que vai para a missa. Aquela rapariga ainda vai virar freira, oiçam o que eu vos digo!

A gargalhada fora geral e, desde esse dia, o nome pegara. No dia seguinte, já toda a escola se referia a Carla pela alcunha e nunca mais ninguém a chamou pelo nome, excepto nas raras ocasiões em que falavam com ela directamente. Mas Carla sabia da forma como a tratavam nas suas costas e sabia quem fora o autor da brincadeira. Mais um motivo para nunca o perdoar.

Mas agora, naquele bar, Carla parecia tudo menos uma freira. Alta, morena, com longos cabelos negros como o mais negro que se possa imaginar revolteando rebeldes até aos ombros, olhos cor de mel e um porte soberano no seu vestido de cetim vermelho, destacava-se das demais raparigas que tomavam café, conversavam, riam ou dançavam.

- Claro que me lembro! Como podia esquecer a inesquecível Carla? Mas senta-te um pouco e conta-me como tens passado!

Carla aceitou o convite.

- Sento, mas só um bocadinho, que tenho ali uns amigos à espera. Só cá vim cumprimentar-te e perguntar-te se queres juntar-te a nós.

- Obrigado pelo convite, mas combinei encontrar-me aqui com uns amigos. Eu, que costumo andar sempre atrasado, hoje fui o primeiro a chegar e agora estou para aqui à espera. Mas fala-me de ti! Estás a acabar Medicina, suponho?

- Não, estou no último ano de Biologia - uma sombra imperceptível passou no seu olhar. - Não consegui entrar em Medicina.

- Não!? Isso é que foi uma pena; tenho a certeza de que se perdeu uma grande médica. - Miguel sempre soubera que um dos sonhos de Carla fora entrar em Medicina. Aliás, no Colégio correra o boato de que ela tinha saído a meio do décimo primeiro para ir tentar melhorar a média num Externato que, nessa altura, operava verdadeiros milagres nas médias dos seus alunos que queriam ir para Medicina. Ou o boato era falso, ou nem os milagres do Externato salvaram Carla.

- E tu que fazes, actualmente?

- Eu acabei Engenharia Informática no final do ano passado e estou agora a trabalhar numa empresa de componentes informáticos para a indústria aerospacial. Mas quero ver se me lanço por conta própria um dia destes. Tenho aqui umas ideias para um sistema operativo que vai revolucionar o mundo!

O SOM - Sistema Operativo do Miguel -, como ele lhe chamava, à falta de melhor nome, era a menina dos seus olhos desde o terceiro ano da faculdade. Tudo nascera dum projecto opcional da Faculdade para a cadeira de Sistemas Operativos, em que os alunos tinham de idealizar um sistema operativo rudimentar. Miguel inscrevera-se no projecto por curiosidade, mas adorara-o desde o início dos trabalhos, tendo recebido a nota máxima pelo seu trabalho. A partir daí, Miguel decidira continuar a trabalhar para aperfeiçoar o seu projecto, apesar das opiniões desfavoráveis de professores e colegas, que diziam que construir um sistema operativo do nada era uma tarefa impossível de ser realizada por uma só pessoa. Apesar disso, Miguel resolvera dedicar-se a fundo ao seu SOM e os amigos perceberam que não iam conseguir demovê-lo da ideia.

- Como deves imaginar, tenho trabalhado muito: o meu emprego é muito exigente e os tempos livres são passados a programar por conta própria...

- Parece interessantíssimo; e da maneira como falas, vê-se que adoras o que fazes.

- Não trocava por nada deste mundo.

Neste momento, a conversa foi interrompida pela chegada dos amigos de Miguel. Carla levantou-se imediatamente, despediu-se com um aceno e afastou-se.

7 comentários:

nokturnna disse...

"Não te lembras de mim, pois não?"
Espero que seja esse o título do livro que vão publicar... eheheh Escrevam maiiiis hoje que não aguento esperar por 3ªfeira.

Maria disse...

Sonhadora - É precipitado falar num livro. Este blog, esta estória, e, se tudo correr bem, as que possam eventualmente seguir-se-lhe, são apenas uma aventura de dois amigos que resolveram escrever "à desgarrada". Ainda bem que gostas. Espero que continues a ler-nos e a gostar tanto como gostaste até agora.

Beijinhos,

Maria

Anónimo disse...

bom inicio :)

Maria disse...

K8tye - Obrigada pela visita e pelo elogio. Espero que continues a gostar.

Beijinhos,

Maria

Anónimo disse...

olá.
vim ler o "livro" por conselho de uma amiga..e vale mesmo mesmo a pena.
este primeiro capítulo é lindo.
é uma abordagem muito simples e fácil de ler..e como não é muito comprido..não dá para fartar :)
gostei mesmo!dou-vos os parabéns!
beijinhos

LadyBug disse...

ahh...eu quando meti o meu comentário ainda não tinha conta...este último comentário foi meu...

Maria disse...

Ladybug - Muito obrigada pelo elogio. Espero que os próximos episódios sejam capazes de prender a tua atenção de forma tão intensa e fiel como até agora!!!

Beijinhos,

Maria